quinta-feira, 29 de novembro de 2012

QUANDO NASCI...



quando nasci. esperava que a vida.
me trouxesse. a terra. quando nasci.
esperava que a vida. me trouxesse.
as árvores. e os pássaros. e as crianças.
quando nasci. tinha o mundo. todo.
depois dos olhos. depois dos dedos.
e não percebi. não percebi. nada.
nunca imaginei. quando nasci. que a vida.
quando nasci. já era a escuridão. a escuridão.
em que estava. quando nasci.

José Luís Peixoto

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

PERENIDADE



Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
Uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
Em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
Pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
O luxo eterno que ela te concede.


Miguel Torga
in Libertação

sábado, 24 de novembro de 2012

SENSAÇÃO




No azul das tardes de verão, irei pelos caminhos
tracejado pelos trigos, pisar a erva tenra:
sonhante, sentirei a meus pés sua frescura.
Deixarei o vento banhar-me a cabeça nua.
Não falarei - pensarei em nada:
mas um amor infinito subir-me-á na alma, e eu
irei longe, bem longe, como um cigano, feliz
pela natureza -, na companhia da mulher sonhada.

Arthur Rimbaud
in "O rapaz raro, Iluminações e Poemas"

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CITAÇÃO



"Quando morremos? Na verdade, morremos todos os dias. 
Morte são também nossas decepções, nossos projetos falidos,
nossas ideias abortadas. Morte é tudo o que nega a vida. 
A morte definitiva, a que encerra todos os atos, a que nos 
apresenta a vida concluída, dessa não podemos tratar
porque ela nos excede. Restam-nos os insucessos que a
anunciam, neles acenam os signos do que não nos é dado 
alcançar. Esperamos e conjeturamos. Como poderíamos,
de outro modo, elevar-nos acima da solidez dos corpos
que nos cercam, assinalando-lhes a precariedade?"

SCHÜLER, 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

AS PALAVRAS


em trânsito
Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
algumas gotas de sal.


Albano Martins
in:O Mesmo

terça-feira, 20 de novembro de 2012

MIA COUTO



Encheram a terra de fronteiras, 
carregaram o céu de bandeiras,
mas só há duas nações –
a dos vivos e dos mortos.

MIA COUTO,
in "Um Rio Chamado Tempo,
 Uma Casa Chamada Terra"

A MORTE ABSOLUTA




Morrer. 
Morrer de corpo e de alma. 
Completamente. 

Morrer sem deixar o triste despojo da carne, 
a exangue máscara de cera, 
Cercada de flores, 
que apodrecerão — felizes! — num dia, 
Banhada de lágrimas 
Nascida menos da saudade do que do espanto da morte. 

Morrer sem deixar porventura uma alma errante... 
A caminho do céu? 
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? 

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, 
A lembrança de uma sombra 
Em nenhum coração, em nenhum pensamento, 
Em nenhuma epiderme. 

Morrer tão completamente 
Que um dia ao lerem o teu nome num papel 
Perguntem: “Quem foi?...” 

Morrer mais completamente ainda 
— Sem deixar sequer esse nome. 


MANUEL BANDEIRA 
In Lira dos  cinquent’anos

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CITGAÇÃO


"O valor do homem não reside apenas na luz
 da sua inteligência, mas antes, e acima 
de tudo, no sentimento, na intimidade e
 na profundidade da alma."

Immanuel Kant

INICIAL



O mar azul e branco e as luzidias 
Pedras: O arfado espaço 
Onde o que está lavado se relava 
Para o rito do espanto e do começo 
Onde sou a mim mesma devolvida 
Em sal espuma e concha regressada 
À praia inicial da minha vida 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Dual

VELAS



Os dias do futuro erguem-se diante de nós
como uma série de pequenas velas acesas -
pequenas velas douradas, quentes e vivas.

Os dias passados ficam atrás,
uma triste fileira de velas apagadas;
as mais próximas ainda exalam fumaça,
velas frias, derretidas e recurvadas.

Não quero vê-las; entristece-me seu aspecto,
e entristece-me lembrar seu primeiro clarão.
Adiante contemplo minhas velas acesas.

Não quero voltar-me para não ver, apavorado,
com que rapidez a sombria fileira se alonga,
com que rapidez se multiplicam as velas apagadas!

Konstantinos Kaváfis
Tradução de Ísis B. da Fonseca

domingo, 18 de novembro de 2012

IMPROVISO



Eu mesma sou a culpada
Dos malefícios alheios.
A quem não podia nada,
Eu é que fui dar os meios
Para me ver maltratada.

Vai correndo, fonte pura,
Não mires quem te bebeu.
Não queiras ver a criatura
Que se nutriu do que é teu.
Salva-te da desventura!


Cecília Meireles
In Retrato Natural

terça-feira, 13 de novembro de 2012

CRIANÇA




Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, – e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente…

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles

domingo, 11 de novembro de 2012

CAIO FERNANDO ABREU


...
"Por tudo que fomos.
Por tudo o que não conseguimos ser. 
Por tudo que se perdeu.
Por termos nos perdido. 
Pelo que queríamos que fosse e não foi. 
Pela renúncia.
Por valores não dados.
Por erros cometidos.
Acertos não comemorados.
Palavras dissipadas.
Versos brancos.
Chorei pela guerra cotidiana.
Pelas tentativas de sobrevivência.
Pelos apelos de paz não atendidos.
Pelo amor derramado.
Pelo amor ofendido e aprisionado.
Pelo amor perdido.
Pelo respeito empoeirado em cima da estante.
Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda- roupa.
Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados.
Pela culpa. Toda a culpa. Minha. Sua. Nossa culpa.
Por tudo que foi e voou.
E não volta mais, pois que hoje é já outro dia.
Chorei.
Apronto agora os meus pés na estrada.
Ponho-me a caminhar sob sol e vento.
Vou ali ser feliz e já volto."
...

Caio Fernando Abreu

sábado, 10 de novembro de 2012

VOLTAIRE



"Um livro aberto é um cérebro que fala; 
Fechado, um amigo que espera;
Esquecido, uma alma que perdoa;
Destruído, um coração que chora." 

- Voltaire

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CANÇÃO



Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.

Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:
“o antepassado”.

Eras um poema
Cujas palavras
Cresciam dentre
Mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
Tempo sem rastro,
De esquecimentos
Atravessados.

Disso é que sofre
A amargurada
Flor da memória
Que ao vento fala


Cecília Meireles
In Retrato Natural

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

AS HORAS



As Horas cismam no ar parado:
— Passado.

As Horas bailam no ar fremente:
— Presente.

As Horas sonham no ar obscuro:
— Futuro.


Da Costa e Silva,
in Poesias Completas

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

OS QUE SE FORAM



Pouco a pouco vou compreendendo
esta verdade tão simples:
Agora é que realmente existem
os que se foram.
Só agora é que todos eles se movimentam
livres, imensamente livres.
Só agora é que falam
o que sempre calaram
e era precisamente o que me levaria
à única verdade que traziam.
Saem de velhos retratos,
ou de ressuscitadas palavras soltas,
e caminham comigo
que os não sabia tão transparentes
e comunicativos
tão lógicos, tão completos.
Completos e definitivos.

Emílio Moura

domingo, 4 de novembro de 2012

HÁ UMA SOLIDÃO NO CÉU



Há  uma solidão no céu,
uma solidão no mar
e uma solidão na morte.
Mas fazem todas companhia
comparadas a este local profundo,
esta polar intimidade,
uma Alma que reconhece a Si mesma:
finita infinidade.

Emily Dickinson
Tradução de Paulo Mendes Campos

sábado, 3 de novembro de 2012

CONQUISTA



Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!


Miguel Torga,
in 'Cântico do Homem'

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

BERNARDO SOARES



"Minha alma é uma orquestra oculta;
não sei que instrumentos tangem e rangem,
cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim.
Só me conheço como sinfonia."

Bernardo Soares,
in Livro do Desassossego