quinta-feira, 31 de outubro de 2013

DE PASSAGEM



Não fiques triste: já vem vindo a noite
quando veremos sobre a terra esbranquiçada
a Lua fria, como que a rir-se por dentro,
e então descansaremos de mãos dadas.

Não fiques triste: já vem vindo o tempo
quando teremos sossego. Nossas cruzinhas estão
erguidas juntas na margem clara da vida,
chove e neva,
e os ventos vem e vão.


Hermann Hesse
In: Andares



"VIVER NÃO É PRECISO"*



Melhor é tentar dormir...
Deixar de sentir tantas dores;
sonhar talvez com raras flores. 

Afiar o olfato, o tato, a visão:
Talvez, em sonho, abrir mão 
da ferrenha insana razão.

Um recanto, um carrinho
nem tão cheio, ladeira
acima, me torna imprestável:

Eu, um homem que deveria 
agir sem tropeço ou penas;
só ter e abraçar um carinho!

O quê a seguir virá?
A rabugência ou a indecente
perda da cara, nobre paciência?

A lamúria cansa. O excesso
de força e razão imbeciliza.
A demência não me alcança
- mas o trôpego passar avança.

Não sou 'normal'; nunca ser
pretendi. Mas um mínimo 
de anímica força preciso ter!

Exausto e só, (de)escrevo
- e desconfio do meu destino,
afazeres, cansaço e sorte:

A par dos anos restantes,
à espreita na esquina, os olhos
- que não temo - da morte:

Vivo e sobrevivo como nasci.
Sem sustos, medos passados;
com pés não mais descalços.

Caminho sem pressa. Movimento
a prosa: alpendre de versos áulicos! 
Alegre ou triste, só busco abraços.

À criança que trago no peito grito:
"Avante! Atrás, não só vem gente."
Há vida: reverso e maior advento.


*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"




domingo, 27 de outubro de 2013

SEMPITERNO



Passa o tempo no caminhar das horas
levando a juventude a beleza e a graça.
Mas, o amor que sentimos e nos enlaça
permanece atemporal e é sempre agora!


-Helena Frontini-










sábado, 26 de outubro de 2013



Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alva
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.


Edgar Allan Poe,
in Obra Completa

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

CANÇÃO PARA MUSICAR



Por que ficaram as árvores
tão sós e silentes que o vento parou?

Por que de súbito os pássaros
quedaram tão quietos que o luar se apagou?

Foi uma face de estrela
que uma água parada na mata espelhou

Foi a beleza do mundo
que na alma dos poetas, sonhando, cantou.


Tasso da Silveira,
in Poemas de Antes 






A MONTANHA



A seda do céu começou a manchar-se de sombra,
e o cristal do ar sereno
embaciou-se de sombra
e com o silêncio profundo
a noite, imensa, desceu.

E junto a mim, sob o céu morto,
ficou apenas este vulto de montanha
enchendo o mundo ...


Tasso da Silveira
in Poemas





CANÇÃO




O país que procuras
fica além da distância.

Talvez teu passo não o atinja
mesmo se caminhares
toda a tarde do mundo.

O país que procuras
é longe.
Existe à beira dos profundos mananciais
de genesíaco frescor.
Banha-se na clara névoa das origens,
na pura luz da infinita inocência.

Talvez teu passo não lhe atinja
a perdida fronteira,
mesmo se caminhares, caminhares
ininterruptamente
toda a noite da Vida...


Tasso da Silveira,
in Poemas de Antes

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

RESPIRO TEU NOME



Respiro teu nome.
que brisa tão pura
súbito circula
no meu coração.

Respiro teu nome.
repentinamente,
de mim se desprende
a voz da canção.

Respiro teu nome.
Que nome? Procuro...
- Ah teu nome é tudo.
E é tudo ilusão.

Respiro teu nome.
Sorte. Vida. Tempo.
Meu contentamento
é límpido e vão.

Respiro teu nome.
Mas teu nome passa.
Alto é o sonho. Rasa,
minha breve mão.



Cecília Meireles
in Canções -1956

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

49



Quando as crianças brincam
E eu oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
 
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda da alegria
Que não foi de ninguém.
 
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Que ao menos quem sou sinta
Isto no coração.

 
Fernando Pessoa
In Antologia Poética

terça-feira, 22 de outubro de 2013

ALI



Ali sofreste. Ali amaste. 
Ali é a pedra do teu lar. 
Ali é o teu, bem teu lugar. 
Ali a praça onde jogaste 
o que o destino te quis dar. 

Ali ficou tua pegada 
impressa, firme, sobre o chão. 
Ninguém a vê sob o montão 
de cinza fria e poeirada? 
Distingue-a, sim, teu coração. 

Podem talvez o vento, a neve, 
roubar a flor que tu criaste? 
Ali sofreste. Ali amaste. 
Ali sentiste a vida breve. 
Ali sorriste. Ali choraste. 


Saúl Dias
in "Sangue"

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

APELO



Água parada nos baixios:
Passa o rio veloz, alegre, quente
No desejo fraterno doutros rios,
E a tua força aí a olhar, dormente!

Sei que uma folha em ti é mais presente,
Mais romântica e morta doutros frios;
Sei que a lua penteia no teu pente
Os seus longos cabelos fugidios.

Mas apodrece em ti a vida!
A seiva, o ar, o sol, são a partida
De um levedar soturno e sem grandeza.

Água dormente, foste chuva alada!
Foste nascente e túnica orvalhada
Do corpo matinal da natureza!


Miguel Torga
In ‘Libertação’

CONFIDENCIAL



Não me perguntes, porque nada sei
Da vida,
Nem do amor,
Nem de Deus,
Nem da morte.
Vivo,
Amo,
Acredito sem crer,
E morro, antecipadamente
Ressuscitando.
O resto são palavras
Que decorei
De tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
Aprende a adivinhar
O que de mim não possas entender.

Miguel Torga 
In ‘Obra Completa’

ARTE POÉTICA



Que o verso seja como chave
que abra mil portas.
Uma folha cai, algo passa voando;
quanto os olhos fitam criado seja,
e a alma do ouvinte fique palpitando.

Inventa novos mundos, cuida da palavra;
o adjectivo quando não dá vida, mata.

Estamos no céu dos nervos.
O músculo pende,
Como recordação, nos museus;
mas nem por isso temos menos força:
o vigor verdadeiro
reside na cabeça.

Porque cantais a rosa, poetas?
fazei-a florir no poema.
Só para nós
vivem sob o sol as coisas todas.
O poeta é um pequeno Deus.



Vicente Huidobro (1893-1948)
Tradução de Jorge de Sena, 
em Poesia do Século XX


domingo, 20 de outubro de 2013

TÃO SUTILMENTE EM TANTOS BREVES ANOS



Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos

que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.

LYA LUFT


In Secreta Mirada, 1997

O MUNDO FILTRA-SE PELOS OUVIDOS



O mundo filtra-se pelos ouvidos 
de quem, como eu, só vê a própria noite: 
meus olhos pegam sons com gestos falhos, 
a máscara que vesti não tinha frestas. 
Sons como peixes nesta sombra eterna 
chegam e nadam, giram, se entrechocam, 
em desenhos de luz que não entendo. 
Abro meu coração, ouvido inquieto, 
em busca de algum tom definitivo 
que abra em claridade estes meus olhos 
e me lance desta ilha ao mar aberto.

LYA LUFT
In Mulher no palco, 1984




sábado, 19 de outubro de 2013

ESSA MULHER, A DOCE MELANCOLIA



Essa mulher, a doce melancolia
Essa mulher, a doce melancolia 
dos seus ombros, canta. 
O rumor 
da sua voz entra-me pelo sono, 
é muito antigo. 
Traz o cheiro acidulado 
da minha infância chapinhada ao sol. 
O corpo leve quase de vidro. 


Eugénio de Andrade
In "O Sal da Lingua" (1982)

O LUGAR DA CASA



Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

PALAVRAS




"Diariamente as palavras chocam-se entre si e 
emitem chispas metálicas ou formam pares fosforescentes.
O céu verbal se povoa sem cessar de novos astros.
Todos os dias afloram à superfície do idioma palavras
e frases, minando ainda umidade e silêncio por entre
suas frias escamas. No mesmo instante outras desaparecem.
De repente, o terreno baldio de um idioma fatigado se 
cobre de súbitas flores verbais. Criaturas luminosas
habitam as espessuras da fala..." 

Octavio Paz,
in O arco e a lira

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

APRENDAMOS O RITO




Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago
In Os Poemas Possíveis

TEUS OLHOS



Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremeça,
paisagem solitária.
 
Octavio Paz,
in "Liberdade sob Palavra"



quarta-feira, 16 de outubro de 2013

'O AMOR'



O amor é frágil
O amor é humilde
O amor é claro
O amor é simples
O amor se vai
Foge e se perde
Subitamente
De repente
O amor é insólito
E inseguro
Surge e se esvai
É cinza 
É ouro
É ardência, é fogo
E é nada

Augusto Frederico Schmidt
In Um século de poesia




POÉTICA



Enquanto procuravam conceituar a poesia
E velavam sua face
Com palavras perfeitas,
Enquanto marcavam com sinais agudos
As fronteiras do domínio poético,
Enquanto a inteligência perseguia o mistério –
Veio descendo a tarde
E uma doçura mortal
Envolveu a rua e o mundo.
No céu quase roxo,
No céu incerto e delicado,
Asas escuras fugiam
Do noturno próximo
E subitamente, sinos
Soluçaram.

Augusto Frederico Schmidt

ERA UMA SOMBRA CLARA



Era uma sombra clara
No dia azul.
Era um pequeno soluço
No coro imenso.
Era um fio de vida
Na primavera,
No mundo crescendo,
Na frutificação,
No reflorescimento
Dos seres,
Das árvores,
De tudo,

Era uma lágrima
No seio do mar.
Era um breve gesto de adeus
No movimento
Unânime.

Augusto Frederico Schmidt





A ALMA



Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.

Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.

Sou o que fui ...
Sou o que serei ...

Às vezes me abandono inteiramente a saudades estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua – 
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então

Sou o que fui.
E sou o que serei.


Frederico Augusto Schmidt
in ‘Poesias Completas’


terça-feira, 15 de outubro de 2013

DO SUPÉRFLUO


 
 
Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
 
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?
 
 
Henriqueta Lisboa,
Pousada do Ser 


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

'QUALQUER TEMPO''



Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Falta que Ama'

AMADA SOLIDÃO...




Amada solidão, silêncio amigo, 
Vosso convívio me é tão grato e ameno 
Que, voluntariamente, me condeno 
A viver só, para vos ter comigo. 


Alheio ao mundo, como um poeta antigo, 
Noto, isolado, que ao mais leve aceno, 
Me vêm, em ronda, ao espírito sereno 
As idéias e imagens que persigo... 


Solidão! vem de ti o êxtase infindo 
Em que sinto, em constantes primaveras, 
Meu ser a natureza refletindo... 


Silêncio! enchendo o espaço onde me esperas, 
Sonho, como Pitágoras, ouvindo 
A harmonia divina das esferas.


Da Costa e Silva,
in Poesias Completas

sábado, 12 de outubro de 2013

A BAILARINA



Esta menina 
tão pequenina 
quer ser bailarina. 

Não conhece nem dó nem ré 
mas sabe ficar na ponta do pé. 

Não conhece nem mi nem fá 
mas inclina o corpo para cá e para lá. 

Não conhece nem lá nem si, 
mas fecha os ohos e sorri. 

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar 
e não fica tonta nem sai do lugar. 

Põe no cabelo uma estrela e um véu 
e diz que caiu do céu. 

Esta menina 
tão pequenina 
quer ser bailarina. 

Mas depois esquece todas as danças, 
e também quer dormir como as outras crianças. 


Cecília Meireles,
in Flor de Poemas

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

SER CRIANÇA




...botões de rosa se abrindo
antes do amanhecer

um esboçar de sorrisos
num carrossel de risos!

...é dar as mãos
a outras mãos
aprendendo 
a ser irmão!

...das bocas de fontes puras,
não descem águas escuras!

...pela esperança do amor
só pede beijos e abraços
para o seu mundo que é cor!


Alvina Nunes Tzovenos
In Sonhos e Vivência

O BRANCO



Existir na realidade,
Crescer no invisível da voz imóvel,
Ouvir dentro de si gestos que cantam,
Forças que comandam movimentos,
Sentir o imponderável tombado sob os pés,
Ver a luz que dissolve todos os inícios
Intensamente iluminando o pensamento morto.
Existir na irrealidade,
No esquecimento de todas as coisas entendidas
Quebrando os ossos que nos fazem eretos,
Perscrutando todos os desejos que já são alheios.
No branco espesso da irrealidade
Permanecer no vácuo, depois altura, depois fogo e depois nada.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)



NÃO FUJAS




Não fujas.
Quero apenas
Que me deixes derramar
A minha escura tristeza
No teu coração.

Quero apenas que recebas em ti,
No teu ser,
No teu espírito,
A minha tristeza escura,
A tristeza que me deste,
Que veio de ti,
Que nasceu das tuas imagens,
E da tua pérfida doçura.

Quero que bebas a minha tristeza
Como um vinho antigo.
E o que foi amargo
E se formou de lágrimas,
De angústias,
E o que foi para mim desespero,
Inquietação
E sofrimento,
Serás doce, aos teus lábios,
Como um vinho generosos
E antigo.

Quero que bebas a minha tristeza.

Augusto Frederico Schmidt,
in O Caminho do Frio




OLHAR DE INFÂNCIA



Penetrei pela enorme profundeza
Deste mar colorido de teus olhos
Triste azul. Melancólica tristeza.
Penedo transformado sem escolhos.

Penetrei. Nadador por ter andado.
Suicida solitário. O mar azul
Logo cobriu-me num estranho fado
Quem em vez do Norte, descobriu o Sul.

Azul dentro do azul. A maresia
Marítimos escombros desvendava
E os sonhos que eu fazia, desfazia,
Desfazendo um abismo à idéia escrava.

Afoguei-me no fundo da distância
De um olhar, que busquei por minha infância.

Ives Gandra





PAULO LEMINSKI


existe um planeta
perdido numa dobra
do sistema solar

aí é fácil confundir
sorrir com chorar

difícil é distinguir
esse planeta de sonhar


Paulo leminski
in Caprichos & Relaxos

PEDRA CORAÇÃO



Houve um tempo sem forma, uma fusão
Mordida de cristais neste basalto.
Houve decerto um rio, um mar antigo,
Onde a pedra rolou.
Houve também um sismo, e outro sismo
Agora cumprirá, na mão fechada,
A forma prometida.Assim, exacta,
A pedra se moldou.

José Saramago
In Provavelmente Alegria




GEOMETRIA DOS VENTOS




Eis que temos aqui a Poesia, 
a grande Poesia. 
Que não oferece signos 
nem linguagem específica, não respeita 
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio. 
como o sangue nas artérias, 
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita. 
E ao mesmo tempo tão elaborada - 
feito uma flor na sua perfeição minuciosa, 
um cristal que se arranca da terra 
já dentro da geometria impecável 
da sua lapidação. 
Onde se conta uma história, 
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba, 
até à fronteira da loucura, 
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo, 
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao 
mesmo tempo 
fácil e insolúvel da sua tragédia. 
Sim, é o encontro com a Poesia. 

Rachel de Queiroz.













JOSÉ SARAMAGO



“...cada um de nós é este pouco e este muito,
esta bondade e esta maldade, 
esta paz e esta guerra, revolta e mansidão."



José Saramago,
in O evangelho segundo Jesus Cristo




TRADUZIR-SE



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo. 

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão. 

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira. 

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta. 

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente. 

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem. 

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Ferreira Gullar
In: Na Vertigem do Dia


PASTORAL




Não há, não, 
duas folhas iguais em toda a criação. 

Ou nervura a menos, ou célula a mais, 
não há de certeza, duas folhas iguais. 

Limbo todas têm, 
que é próprio das folhas; 
pecíolo algumas; 
bainha nem todas. 
Umas são fendidas, 
crenadas, lobadas, 
inteiras, partidas, 
singelas, dobradas. 

Outras acerosas, 
redondas, agudas, 
macias, viscosas, 
fibrosas, carnudas. 

Nas formas presentes, 
nos actos distantes, 
mesmo semelhantes 
são sempre diferentes. 

Umas vão e caem no charco cinzento, 
e lançam apelos nas ondas que fazem; 
outras vão e jazem 
sem mais movimento. 
Mas outras não jazem, 
nem caem, nem gritam, 
apenas volitam 
nas dobras do vento. 

É dessas que eu sou. 


António Gedeão ,
in Poesias Completas

PROFECIA




Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto — indigesto

— voltará implacável como um “boomerang”
e ninguém escapará a essa lei.

Sidónio Muralha
“in” Obras Completas do Poeta


CERTA FERIDA



Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.

Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.

Uma flor brotava errante
na parte decepada.

Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.


Affonso Romano de Sant'Anna,
in Vestígios


FRONTEIRAS



Os cedros, a lua, os túmulos
geraram este silêncio,
ou do silêncio nasceram
cedros, túmulos e lua?

Indiscerníveis limites:
não podemos saber nunca
se triste é este pobre mundo,
se nós é que somos tristes.


Tasso da Silveira
Poemas Tristes

NASCIMENTO DO POEMA



É preciso que venha de longe 
do vento mais antigo 
ou da morte 
é preciso que venha impreciso 
inesperado como a rosa 
ou como o riso 
o poema inecessário. 

É preciso que ferido de amor 
entre pombos 
ou nas mansas colinas 
que o ódio afaga 
ele venha 
sob o látego da insônia 
morto e preservado. 

E então desperta 
para o rito da forma 
lúcida 
tranqüila: 
senhor do duplo reino 
coroado 
de sóis e luas.


Dora Ferreira da Silva,
in Andanças

O SILÊNCIO



O silêncio tem uma porta
que se abre 
para um silencio maior:
antecâmara do ultimo,
que anuncia outro depois. 


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

NUNCA MAIS...




Passa um dia,
e outro a correr atrás dele
e outro e outro...
O tempo a todos impele,
tal o vento
levando, em doida correria,
revoadas de folhas outonais,
folhas de calendários sempre iguais,
uma a uma arrancadas,
perdidas nas estradas...

Nunca mais... Nunca mais...

Saúl Dias
In Essência


COTIDIANO




Murchou a flor aberta ao sol do tempo.
Assim tinha de ser, neste renovo
Cotidiano,
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume.
O gume
Do cansaço
Vai ceifando,
E o braço
Doutro sonho
Semeando.
É essa a eternidade:
A permanente rendição da vida.
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume,
E o lume
De não sei que ilusão a arder no cume
De não sei que expressão nunca atingida. 


Miguel Torga
In "Orfeu Rebelde" 

SEM RETORNO



Nada se repete na travessia.
Longa despedida sem retorno.

Marcos de nunca mais
balizam o contínuo transformar-se.

Vivos desenhos de sombra
sublinham o passante
e se desvanecem
ao anoitecer.


Helena Kolody, 
in "Viagem no Espelho"

EM NOME




Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)



FESTA NOTURNA



O sol
vestiu o entardecer
com rendas douradas,
violetas e azuis...
Para a festa da noite,
a lua cheia
transformou-se
em prateada medalha
e enfeitou
o peito redondo do infinito...

Adélia Maria Woellner

OUVI DIZER




Existe um lugar
- um passarinho me contou -
onde os seres habitam
impunemente felizes
suas tocas, suas casas.
Seria em que floresta,
em que memória encantada
em qual inaudito planeta,
ou esfera mais abençoada ?
-Em que lugar,
diz-me pássaro escuso,
preciso saber,
para que eu junte no bico
minhas imprescindíveis ervas,
minhas malas
e, como tu,
eu me adeque aos ventos,
e bata definitivamente as asas.


Fernando Campanella

AMO A MANSIDÃO



A mansidão eu amo e sempre que entro
pelos ermos umbrais da escuridão
abro os olhos para enchê-los
da doçura dessa paz.

A mansidão eu amo sobre todas
as coisas deste mundo.

Na quietude das coisas eu descubro
um canto enorme e mudo.
E quando elevo os olhos para o céu
no estremecer das nuvens eu encontro,
na ave que cruza o espaço e até no vento
a doçura que flui da mansidão.


Pablo Neruda,
 in "Cadernos de Temuco"