quinta-feira, 31 de maio de 2012

PRAIA



NUVEM, caravela branca
no ar azul do meio dia:
— quem te viu como eu te via?

Rolaram trovões escuros
pela vertente dos montes.
Tremeram súbitas fontes.

Depois, ficou tudo triste
como o nome dos defuntos:
mar e céu morreram juntos.

Vinha o vento do mar alto
e levantava as areias,
sem vêr como estavam cheias

de tanta coisa esquecida,
pisada por tantos passos,
quebrada em tantos pedaços!

Por onde ficou teu corpo,
— ilusão de claridade —
quando se fez tempestade?

Nuvem, caravela branca,
nunca mais há meio dia?

(Já nem sei como te via!)

Cecília Meireles ,
in Viagem

quarta-feira, 30 de maio de 2012

HÁ PALAVRAS



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill


segunda-feira, 28 de maio de 2012

SONO COLOQUIAL





Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

Mia Couto,in
Idades/ cidades/ divindades

quinta-feira, 24 de maio de 2012

ADEUS À VIDA


É, então, isso a vida: a nau perdida,
Sem bússola e sem leme, aos temporais?
A flórea escarpa, de íngreme subida,
Da montanha dos risos e dos ais?

É, então, isso a vida: a flor colhida
Sobre abismos ocultos e fatais?
A quimera da Terra Prometida,
No êxodo eterno para o Nunca-Mais?

É, então, isso a vida: o sonho obscuro
Dos Ícaros, Jasões e Prometeus,
Perdido na celagem do futuro?

É, então, isso a vida? — Vida, adeus!
Não é esse o caminho que procuro...
Mas seja tudo pelo amor de Deus.


Da Costa e Silva


quarta-feira, 23 de maio de 2012

ACONTECEU POESIA



A poesia não é tão rara como parece.
Na mais ínfima das coisas
A poesia acontece.
Aconteceu poesia
Quando nos teus olhos cor do céu
Vi um pedaço de céu que me cabia.
Aconteceu poesia
Quando as tuas mãos numa carícia vaga
Moldaram no meu rosto ar de angústia
Que o tempo não apaga.
Aconteceu poesia
Quando nos teus olhos cor do céu
Vi um pedaço de céu que me fugia.
Até no dia em que morreste,Mãe,
Aconteceu poesia.


Fernando Vieira

sexta-feira, 18 de maio de 2012

ISABEL MEYRELLES


Eu serei água
água verde
parada
opaca
e estagnada
Eu serei água
onde só tu poderás
refletir-se
mais nada

Isabel Meyrelles
In ‘Palavras Noturnas e Outros Poemas’

quinta-feira, 10 de maio de 2012

COMEÇO DE BIOGRAFIA



Eu sou o pássaro diurno e noturno,
O pássaro misto de carne e lenda,
Encarregado de levar o alimento da poesia e da música
Aos habitantes da estrada do arranha-céu e da nuvem.
Eu sou o pássaro feito homem , que vive no meio de vós.
Eu vos forneço o alimento da catástrofe e o ritmo puro.
Trago comigo a semente de Deus...e a visão do dilúvio.


Murilo Mendes
In Poesia


domingo, 6 de maio de 2012

CANTO DA MADRUGADA


'CANTO DA MADRUGADA'
(Augusto Frederico Schmidt)

Avancei pela noite.Abri os braços e recebi a aurora pequenina.
Chorava ainda. Suas lágrimas desceram sobre meu rosto.
Veio um perfume forte de flores molhadas,
Renovaram-se as vozes dos galos pelas campinas úmidas.
Lenhadores dormem nos casebres frios.
Estão nascendo flores misteriosas
Estão crescendo grandes almas nas sombras da noite.
Porque há um canto que sai da noite e vem acordar a aurora adormecida!

Augusto Frederico Schmidt
In Um século de poesia

sexta-feira, 4 de maio de 2012

BRUMAS



Nas brumas dos meus silêncios
Nascem visões encantadas,
Com ninfas, bruxas e fadas,
Sonhos de amor, sempre densos.

Nas brumas dos meus silêncios,
Onde os mistérios são nada,
Surgem paixões exaltadas,
Feitas desejos, imensos.

Nascem lembranças, eivadas
De sensações adiadas
E cheiros breves, intensos,

Sem ilusões ansiadas,
Em desespero, guardadas
Nas brumas dos meus silêncios.


Vitor Cintra
in " Murmúrios"