quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ESPERANÇA




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
vive uma louca chamada Esperança
e ela pensa que quando todas as sirenas
todas as buzinas
todos os reco-recos tocarem,
atira-se 
e
- ó delicioso vôo
será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá, então,
(é preciso explicar-lhes tudo de novo!)
ela lhes dirá, bem devagarinho, para que não esqueçam nunca:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


___Mario Quintana,
 in Baú do Espantos pg 77

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VAI, ANO VELHO





1

Vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum , prá trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,,
a casa e o coração.

Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.


2

Vem Ano Novo, vem veloz
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz, moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
-de utopia.

Vem na areia da ampulheta como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se

se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol da gema no Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

3

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.

Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.

Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso  Romano de  Sant’Anna







segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

GRITO




A única certeza que me cabe
quando olho minhas mãos
que envelhecem comigo
embora às vezes pareçam
tão separadas do corpo
pássaros que tivessem perdido
todo o resto do bando
a única certeza é de que o grito
que nasce com cada um
o primeiro grito
tem que ser ouvido
com seu timbre ainda impregnado
de infinito e dores ancestrais
e esse grito se espalha
em tudo que se faz


Roseana Murray

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

'XII'




Dezembro acende as luzes
em ricos pinheiros de natal.
Mas é naquela árvore
solitária nas grotas
ou à beira da estrada
que se agregam bem-te-vis
e tagarelam maritacas.
Mangueira, Santa Bárbara,
Pata-de-vaca
- ao pássaro tanto faz:
folhagens são mimos anônimos.

Eu insisto em um Deus
que se projeta em tronco
e esparrama os braços
para acolher os seus.


F.Campanella
Poema da série 'Efemérides'

QUINTANARES





O Natal foi diferente
porque o Menino Jesus
disse à Senhora Sant'Ana:
"Vovozinha, eu ja não gosto
das canções de antigamente:
cante as do Mario Quintana!"

Viram-se então os anjinhos
de livro aberto nas mãos
deslizar no ouro dos ares.
Estudaram nova solfa
pelos celestes caminhos
e ensaiaram quintanares.

Deixaram cair os versos
que já sabiam de cor
pelos telhados das casas.
E o milagre das cantigas
foi que até seres perversos
amanheceram com asas.

Cecília Meireles 
Rio de Janeiro. Dezembro de 1946.


sábado, 20 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



“Quando vozes de crianças se ouvem na relva,
E risos se ouvem nas colinas
Meu coração descansa no meu peito,
E todo o resto fica sereno”.

William Blake ,
in Canções da Inocência e da Experiência


CITAÇÃO




"Protegei-me da sabedoria que não chora, 
da filosofia que não ri e da grandeza que
não se inclina perante as crianças."

Khalil Gibran




MINHA VIDA NÃO É...




 
Minha vida não é esta hora a pique
em que me vês tão afobado.
Eu sou uma árvore em frente ao interior de mim.
Sou uma só de minhas muitas bocas
e aquela que primeiro há de fechar-se.
 
Sou aquele intervalo entre duas notas
que só dificilmente se harmonizam,
e é quando o tom da morte vai mais alto.
 
Mas no escuro intervalo as duas soam,
trêmulas ambas.
 
E é bonito o canto.
 
 
 
Rainer Maria Rilke,
in Livro de horas.
 Trad. Geir Campos

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

LUZ ACESA




Além, a luz acesa
sugere a família
em torno à grande mesa;
sugere a vigília
do fazendeiro, agora
com os seus reunido;
sugere a grave hora
em que um comovido
silencio se projeta
em torno à grande mesa,
como essa luz quieta
no descampado acesa.


Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

NATAL


 
 
Não ouço, daqui, o repicar dos sinos,
nem os coros de natal, nem, sequer,
o alvoroço, que o meu riso de criança
transportava. Eu sei : a infância
perdeu-se no lugar onde nasci.
Contudo, a um canto da memória,
está, ainda, resistindo ao sono,
a menina que fui. E, ano após ano,
aguardo, com ela, um menino jesus,
para sempre adormecido no meu peito.
 
 
Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005
 

domingo, 14 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERARIO



A gente ama não é a pessoa que fala bonito.
 É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita 
quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta.
 É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta
 que ele termina. Não aprendi isso nos livros.
 Aprendi prestando atenção."

In: O AMOR QUE ACENDE A LUA)
Rubem Alves



sábado, 13 de dezembro de 2014

INTACTA MEMÓRIA




Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

II




Que saudades de ti, que estás distante,
tão distante, mas tanto, que parece
que estás doente, quase agonizante...


E, Porque estás agonizante,
minha saudade toma a forma de uma prece...



Onestaldo de Pennafort,
in Poesia







segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




"Vou abrir a porta e ele vai entrar. 
Vai me abraçar, sorrir para mim, vai pegar minha mão,
e quem sabe pela primeira vez vamos de verdade falar.
Ou calar – num silêncio melhor do que qualquer palavra."

Lya Luft 
in “O silêncio dos amantes”





quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

EXCERTO...





“ Eu me quisera sem limites:
era informe como o infinito”.

Simone de Bauvoir ,
in Memórias de uma Moça bem Comportada









EXCERTO LITERÁRIO





Minha experiência humana era curta; sem um bom ângulo
de luz nem palavras adequadas, não aprendia tudo.
A natureza descobria-me,visíveis, tangíveis, uma 
porção de maneiras de existir de que nunca me aproximara.
Admirava o isolamento soberbo do carvalho que
dominava o parque-paisagem; apiedava-me da solidão em
comum das folhinhas de relva. Aprendi as manhãs
ingênuas, e a melancolia crepuscular, os triunfos e 
os declínios, as renovações e as agonias.
Algo um dia se acordaria em mim com o perfume das
madressilvas.Todas as noites ia sentar-me entre as
mesmas urzes e contemplava as ondulações azuladas 
das colinas; todas as tardes. o sol deitava-se
atrás do mesmo monte: mas os vermelhos, os rosa,
os carmins, os violeta não se repetiriam nunca...

Simone de Beauvoir,
in Memórias de uma Moça bem-comportada



terça-feira, 2 de dezembro de 2014

ESTA GENTE

(imagem Tarsila do Amaral - Operários)


Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 
 
Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 
 
Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 
 
Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 
 
E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 
 
Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 

 
 
 Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in “Geografia”,