quinta-feira, 28 de junho de 2012

ACORDAR



Um pássaro canta de fora da janela;
o sol da manhã despeja a sua luz
sobre o campo. Ela ocupa-se em nada,
como a libélula que procura
os filamentos de brilho na água
do charco. E a vida declina
na oblíqua sonolência dos seus olhos.

Nuno Júdice

segunda-feira, 25 de junho de 2012

OUVINDO O PIANO



Eis-te ao piano... Os amestrados dedos
Fazes correr por sobre as teclas brancas,
Urdindo as tramas de sutis enredos,
Com que os pesares, para longe, espancas.

E os circunstantes silenciosos, quedos,
De corações abertos e almas francas,
Pasmam de ouvir os mágicos segredos
Que, à força d’arte, do instrumento arrancas.

De ouvido atento à execução pasmosa,
Do gênio criador a luz radiosa,
Na tua fronte virginal, diviso.

E aí me quedo, reverente e mudo,
Em êxtase de gozo, alheio a tudo,
Sonhando achar-me em pleno paraíso.


Pe. Antônio Tomaz

quinta-feira, 21 de junho de 2012

AMOR SOLAR



Cansado dos homens afasto as nuvens
Em busca de uma árvore onde eu possa
Beber em paz e em paz
Construir o meu ninho. Ali
No tronco mais silencioso da grande casa
Não sou cidadão de país nenhum
Pai de nenhuma família
Sou apenas o cão mais humilde
Do mundo que há para além do mundo
Onde se medem ao milímetro
O bem e o mal. Nesse pátio
já não estou afastei-me
Quando perdi o sentido do peso
E das medidas - quando alguém me disse
e eu vi
Que numa gota de vinho há dez mil anos
De amor solar.

Casimiro de Brito

quarta-feira, 20 de junho de 2012

BODAS DE DIAMANTE]




Sessenta anos? Sessenta dias?
Duas vidas ou uma vida?
É uma só, e bem vivida.
Triste, sim, que o mundo é triste,
mas, por igual, muita alegria,
que a alegria também existe,
e a vida é múltipla mistura.
A minha pálida fraqueza
- confesso aqui com gratidão –
só encontrou um firme chão
em tua excelsa natureza
e em teu profundo coração
e eu jamais quis outra ventura
que me não desse a tua face
ou o teu ser não retratasse.

Abgar Renault

sábado, 16 de junho de 2012

PAULO LEMINSKI



meu coração de polaco voltou
coração que meu avô
trouxe de longe pra mim
um coração esmagado
um coração pisoteado
um coração de poeta


Paulo leminski
in Caprichos & Relaxos

quarta-feira, 13 de junho de 2012

EU, NO TEMPO


 
Meu espírito caminha irreversivelmente para a irrealidade de tudo.
O universo para, de repente, à espera de minha infância.
Tudo repousa em seu lugar.
O tempo, no relógio.
O silencio, na pedra.
Jogo as máscaras fora e me identifico comigo
que me esperava há séculos.

Emílio Moura
In: Itinerário Poético

terça-feira, 12 de junho de 2012

O ENCONTRO




Subitamente
na esquina do poema, duas rimas
olham-se, atônitas, comovidas,
como duas irmãs desconhecidas...


Mario Quintana
In Baú de Espantos

domingo, 10 de junho de 2012

O DUPLO



Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.


Affonso Romano Sant'Anna,
in Poesia reunida

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O TEMPO É OUTRO RIO




Quase sempre o tempo é outro rio,
uma música larga e possessiva, uma forma
de avidez lunar, de apetite cósmico
que não nos poupa nem nos ama.
Prefigura este rio todo o assombro
que o século e o instante
semeiam à passagem, não passando.

A ruga é o leito de outra água,
da que rasga e avassala, da que arqueia
o dorso do que escreve e do que espera.
Um relógio de quadrante guarda-se
para a contabilidade de outras horas
que não as do sono, que não as do pasmo.

Demora-se o rosto a ver-se envelhecer,
reverbero de lua mansa na areia
onde o corpo ancora e se faz casa.

O tempo é outro rio que passa largo,
ao largo da boca que o chama e se consome.

José Jorge Letria
In Percurso do Método.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

NASCE



Aqui cheguei, aos limites
onde não é preciso falar,
tudo se aprende com o tempo e o oceano,
a lua aparecia
com as suas linhas prateadas
e aos poucos desfazia-se a sombra
com um golpe de onda
e na varanda do mar o dia
abre as asas, nasce o fogo
e tudo continuará azul como amanhã.



Pablo Neruda

domingo, 3 de junho de 2012

XII




Quero viver nesta terra como a árvore
Frutificar a árvore como um tempo.
Purificar-me no tempo como o girassol
que do tempo tem a haste e o farol.

Quero a essência da essência,
a que fixa ao forte
para que o forte sobreviva.

Quero brincar neste beco como a roda
que se caminha
e se repete.

E repetindo é roda
e barca ao mesmo tempo
e coração que aguarda
e sofre morrer docemente.

Quero serenar a ternura
e distribuir o amor demasiado
em destino para toda multidão.

Lindolf Bell
in Ciclos

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A NÓS, NOS CABE ANDAR...



A nós , nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,
são mínimos pedaços
do que há de ficar.

É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.


Rainer Maria Rilke
In: Poesia - Coisa
Tradução: Augusto de Campos