sexta-feira, 31 de agosto de 2012

MAGNIFICAT



Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida,
quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!



Álvaro de Campos
(in Obras Completas II)

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

VIRGÍNIA WOOLF



"... não há portão,
nem fechadura,
nem trinco
que você consiga colocar
na liberdade da minha mente."

Virginia Woolf

CITAÇÃO


“Quem ouve música, sente sua solidão povoada de repente.”

Robert Browning 

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

AS PORTAS DO MUNDO NÃO SABEM



As portas do mundo não sabem
que lá fora a chuva as procura.
As procura. As procura. Paciente
afasta-se, regressa. A luz
não sabe que há chuva. A chuva
não sabe que há luz. As portas,
as portas do mundo estão fechadas:
fechadas para a chuva,
fechadas para a luz.

Sandro Penna

terça-feira, 28 de agosto de 2012

OS GATOS



Lindo gato, vem cá, vem ao meu colo;
Encolhe as unhas dessa pata,
E deixa que eu mergulhe nos teus olhos,
Um misto de metal e ágata.

Quando os meus dedos, à vontade, afagam
O dorso elástico, a cabeça,
E a mão se me inebria de prazer
No corpo eléctrico, a apalpá-lo,

Vejo a minha mulher. O seu olhar,
Tal como o teu, querido animal,
Frio e profundo, fende-nos qual dardo,

E da cabeça até aos pés
Um ar subtil, um perfume perigoso
Nadam em torno do seu corpo.


Charles Baudelaire

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O SILÊNCIO



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


Eugénio de Andrade 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O FLAMBOYANT



Ao sol que a doura e abrasa, ao sol que anima e inflama,
Arria-se, aureolada, a árvore senhorial
De faustosos festões e, rubra, se recama
De flores de ouro e fogo, aberta em flores mil.

Fascinante a cimeira, ostenta, rama a rama,
O encanto natural da flor rara e gentil,
De pétalas de sangue e sépalas de chama;
E, em vez de folha, a flor esplende em cada hastil.

O flamboyant florindo, o florígero estema,
Flutuante a flamejar, num rubor de arrebol,
- Pompéia, iriando à luz, a floração suprema.

E a fulgurar floresce, até perder, em prol
De outra copa mais linda, o purpúreo diadema,
Morrendo pela vida, em holocausto ao sol.


Da Costa e Silva
Poesias Completas

terça-feira, 21 de agosto de 2012

DÁ-ME TUA MÃO...



Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela
canção das colheitas.
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem
os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas
entreabertas.

Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo
agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito
amada.


Adalgisa Nery
in As Fronteiras da Quarta Dimensão 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

FRIEDRICH NIETZSCHE



Não fiques em terreno plano.
Não subas muito alto.
O mais belo olhar sobre o mundo
Está a meia encosta.

Friedrich Wilhelm Nietzsche,
in Gaia Ciência

domingo, 19 de agosto de 2012

HORIZONTE




Alma em suspiro
pelo encontro
do que fica
sempre mais longe


Henriqueta Lisboa,
in Reverberações

sábado, 18 de agosto de 2012

BIOGRAFIA DOS MEUS OLHOS




Estes meus olhos que um dia perceberam vagamente
O colorido, as formas,
Que aprenderam a beleza do vôo das aves e a amplidão das campinas,
Os meus olhos que um dia tão contentes
Transmitiram à minha alma
As palavras de um amor adolescente,
Os meus olhos que mais tarde encantados
Viram os meus braços receberem
O que o meu ventre havia gerado.
Estes meus olhos que choraram tantas vezes escondido,
Que tantas vezes se afogaram no pavor
E num medo indefinido,
Estes olhos que um dia sorriram
De frescura e esperança.
Estes meus olhos cansados
De tristezas prematuras
Rasos de doídas lágrimas
Sobre berços e sepulturas
Foram os que aprenderam duramente
O que era o pranto e a mágoa
Na destruição do desejo da vida mais ardente.
Estes meus olhos que agonizam agora sofridos, envelhecidos
Se apagarão na misteriosa noite
Com a derradeira lágrima pelos desolados e os vencidos!

Adalgisa Nery,
in Cantos da Angústia

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

SIGMUND FREUD



“Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão
importante durante a infância de uma pessoa
que a necessidade de sentir-se protegido por um pai.”

Sigmund Freud

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

TODAS AS ÁGUAS DORMEM



Há uma hora certa,
No meio da noite, uma hora morta,
Em que a água dorme. Todas as águas dormem:
No rio, na lagoa,
No açude, no brejão, nos olhos d’água,
Nos grotões fundos.
E quem ficar acordado
Na barranca, a noite inteira,
Há de ouvir a cachoeira
Parar a queda e o choro,
Que a água foi dormir...
Águas claras, barrentas, sonolentas,
Todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
Fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
Nas placas da folhagem.
E adormece
Até a água fervida,
Nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
De torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
E chorando, a noite toda,
Porque a água dos olhos
Nunca tem sono...

Guimarães Rosa

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

ÁSPERO AMOR



Áspero amor, violeta coroada de espinhos...
Arbusto entre tantas paixões erguidas,
Lança das dores, coroa da ira,
Por quais caminhos e como te dirigiu a minha alma?
Por que precipitaste teu fogo doloroso,
Repentinamente, entre as folhas frias do meu caminho?
Quem te ensinou os passos que te levaram a mim?
Que flor, que pedra, que fumaça mostraram minha casa?
A verdade é que tremeu a noite apavorante,
A aurora encheu todas as taças com seu vinho
E o sol estabeleceu sua presença celeste,
Enquanto o amor cruel me cercava sem trégua,
Até que padecendo-me com espadas e espinhos,
Abriu meu coração um caminho ardente

Pablo Neruda

domingo, 12 de agosto de 2012

GUIMARÃES ROSA



"Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos?
Não haverá, para a gente. Algum tempo de felicidade,
de verdadeira segurança?"
E ele, com muito caso, no devagar da resposta, suave a voz:
– "Faz de conta, minha filha... Faz de conta..."

Guimarães Rosa,
In: Primeiras Estórias 

sábado, 11 de agosto de 2012

CARL JUNG



Não há despertar de consciência 
sem dor. 
As pessoas farão tudo, 
chegando aos limites do absurdo 
para evitar enfrentar 
a sua própria alma. 

Ninguém se torna iluminado 
por imaginar figuras de luz, 
mas sim por tornar consciente 
a escuridão.

Carl Jung

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O TEATRO DAS CIDADES



Qualquer tempo é um tempo duvidoso
assim o meu cercado de cidades
plataformas instáveis
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga
que se inclina nas águas como um palco

Paro na convergência dos estrados
chove já sobre a raça ameaçada
Incertas multidões em volta passam
contemporâneas falam interpretam
a duvidosa língua das imagens

Assim no teatro abstracto das cidades
morrem palavras sobre um palco náufrago

O tempo cobre o céu que se enche de água


Gastão Cruz,
 in O Pianista 

SOLIDÃO



Estás todo em ti, mar, e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sentes...
Que plenitude de solidão, mar solitário!

Juan Ramón Jiménez

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

INTERLÚDIO



As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente – claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales.
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorando.

Fico ao teu lado.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

PEQUENA CANÇÃO



Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!


Cecília Meireles
In Vaga Música

O LADRÃO E VERSOS



Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingênuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Rui Knopfli
“in” Antologia Poética

terça-feira, 7 de agosto de 2012

CHORA EM MEU CORAÇÃO



Chora em meu coração
Como chove na cidade :
Que lassidão é esta
Que invade meu coração?

Oh doce rumor da chuva
Na terra e nos telhados!
Num coração que se enfada
Oh o canto da chuva!

Chora sem razão
Neste coração exausto.
O quê! nenhuma traição?...
Este luto é sem razão.

E é bem a dor maior
A de não saber porquê
Sem amor e sem rancor
Meu coração tanto dói!


Paul Verlaine
Tradução de Amélia Pais 

sábado, 4 de agosto de 2012

LYGIA FAGUNDES TELLES



"Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa
e não esta feia ressentida que me olha do fundo
do espelho.Ouço duzentas e noventa e nove
vezes o mesmo disco,lembro poesias, dou piruetas,
sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo
a alegria está instalada em mim."


Lygia Fagundes Telles
In:As Meninas 

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

NOITE FRIA, GELADA...



Noite fria,gelada
e um fogo ardente, sem temores
crepita na lareira.

Estala a lenha
e
o aconchêgo é doce
o tempo não passa
e o estalido faz brasa!

Assim é a ventura
das coisas passadas:
queimou-se a candura
e cinzas acabadas.


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

RECEITA DE PERFUME




de altura máxima
ressangra e basta
o sol botão


assombra valeriano
os espinheiros:
tílias


que coram glaucas
puras
em tudo amorosas:


não pede
luz
o íntimo das rosas


Antonio Fernando de Franceschi
in A Olho Nu