sexta-feira, 24 de julho de 2009

VAZIO




Todo o mar nos meus olhos, e não basta!
Enche-nos mais uma lágrima furtiva ...
Neste banquete azul, há um só conviva
Farto e feliz.
É o céu, que se debruça sobre as ondas
Sem amargura.
É ele, que não procura
Por detrás da verdade outra verdade.
Serenamente, lá da eternidade,
Bebe e come
A imagem refletida do seu nome.

Miguel Torga
In Antologia Poética

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Elegia

(Tela de Susan Lott)

ELEGIA

1
Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.
Tive medo de a enxaguar: para não saberes que havia caído.

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,
e a voz dos pássaros e a das águas a correr,
- sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.

Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?

Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho.
E tristemente te procurava.

Mas também isso foi inútil, como tudo mais.

(Tela de Susan Lott)


2

Neste mês, as cigarras cantam
e os trovões caminham por cima da terra,
agarrados ao sol.
Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,
e depois a noite é mais clara,
e o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão.

Mas tudo é inútil,
porque os teus ouvidos estão secos como conchas vazias,
e a tua narina imóvel
não recebe mais notícia
do mundo que circula no vento.

Neste mês, sobre as frutas maduras cai o beijo áspero das vespas ...
- e o arrulho dos pássaros encrespa a sombra,
como água que borbulha.

Neste mês, abrem-se cravos de perfume profundo e obscuro;
a areia queima, branca e seca,
junto ao mar lampejante:
de cada fronte desce uma lágrima de calor.

Mas tudo é inútil,
porque estás encostada à terra fresca,
e os teus olhos não buscam mais lugares
nesta paisagem luminosa,
e as tuas mãos não se arredondam já
para a colheita nem para a carícia.

Neste mês, começa o ano, de novo,
e eu queria abraçar-te.
Mas tudo é inútil:
eu e tu sabemos que é inútil que o ano comece.


(Tela de Susan Lott)

3

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas,
e as flores novas, como aroma em brasa,
com suas coroas crepitantes de abelhas.

Teus olhos sorririam,
agradecendo a Deus o céu e a terra:
eu sentiria teu coração feliz
como um campo onde choveu.

Minha tristeza é não poder acompanhar contigo
o desenho das pombas voantes,
o destino dos trens pelas montanhas,
e o brilho tênue de cada estrela
brotando à margem do crepúsculo.

Tomarias o luar nas tuas mãos,
fortes e simples como as pedras,
e dirias apenas: “Como vem tão clarinho!”

E nesse luar das tuas mãos se banharia a minha vida,
sem perturbar sua claridade,
mas também sem diminuir minha tristeza.

(Tela de Susan Lott)

4

Escuto a chuva batendo nas folhas, pingo a pingo.
Mas há um caminho de sol entre as nuvens escuras.
E as cigarras sobre as resinas continuam cantando.

Tu percorrerias o céu com teus olhos nevoentos,
e calcularias o sol de amanhã,
e a sorte oculta de cada planta.

E amanhã descerias toda coberta de branco,
brilharias à luz como o sal e a cânfora,
mirarias os cravos, contentes com a chuva noturna,
tomarias na mão os frutos do limoeiro, tão verdes,
e entre o veludo da vinha, verias armar-se o cristal dos bagos.

E olharias o sol subindo ao céu com as asas de fogo.
Tuas mãos e a terra secariam bruscamente.
Em teu rosto, como no chão,
haveria flores vermelhas abertas.

Dentro do teu coração, porém, estavam as fontes frescas,
sussurrando.
E os canteiros viam-te passar
como a nuvem mais branca do dia.


(Tela de Susan Lott)

5

Um jardineiro desconhecido se ocupará da simetria
desse pequeno mundo em que estás.

Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso,
das tuas que calculavam primaveras e outonos,
fechadas em sementes e escondidas na flor!

Tua voz sem corpo estará comandando,
entre terra e água,
o aconchego das raízes tenras,
a ordenação das pétalas nascentes.

À margem desta pedra que te cerca,
o rosto das flores inclinará sua narrativa:
história dos grandes luares,
crescimento e morte dos campos,
giros e músicas de pássaros,
arabescos de libélulas roxas e verdes.
Conversareis longamente,
em vossa linguagem inviolável.

Os anjos de mármore ficarão para sempre ouvindo:
que eles também falam em silêncio.

Mas a mim – se te chamar, se chorar – não me ouvirás,
por mais perto que venha: não sou mais que uma sombra
caminhando em redor de uma fortaleza.

Queria deixar-te aqui as imagens do mundo que amaste:
o mar com seus peixes e suas barcas;
os pomares com cestos derramados de frutos;
os jardins de malva e trevo, com seus perfumes brancos e vermelhos.

E aquela estrela maior, que a noite levava na mão direita.
E o sorriso de uma alegria que eu não tive,
mas te dava.

(Tela de Susan Lott)

6


Tudo cabe aqui dentro:
vejo a tua casa, tuas quintas de fruta,
as mulas deixando descarregarem ceirões repletos,
e os cães de nomes antigos
ladrando majestosamente
para a noite aproximada.

Range a atafona sobre uma cantiga arcaica:
e os fusos ainda vão enrolando o fio
para a camisa, para a toalha, para o lençol.

Nesse fio vai o campo onde o vento saltou.
Vai o campo onde a noite deixou seu sono orvalhado.
Vai o sol com suas vestimentas de ouro
cavalgando esse imenso gavião do céu.

Tudo cabe aqui dentro:
teu corpo era um espelho pensante do universo.
E olhavas para essa imagem, clarividente e comovida.

Foi do barro das flores, o teu rosto terreno,
e uns liquens de noite sem luzes
se enrolaram em tua cabeça de deusa rústica.

Mas puseram-te numa praia de onde os barcos saiam
para perderem-se.
Então, teus braços se abriram,
querendo levar-te mais longe:
porque eras a que salvavas.
E ficaste com um pouco de asas.

Teus olhos, porém, mediram a flutuação do caminho.
Por isso, tua testa se vincou de alto a baixo,
e tuas pálpebras meigas
se cobriram de cinza.


(Tela de Susan Lott)

7

O crepúsculo é este sossego do céu
com suas nuvens paralelas
e uma última cor penetrando nas árvores
até os pássaros.

É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
este cantar de galos e rolas, muito longe;
e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
ainda sem luz.

Mas não era só isto, o crepúsculo:
faltam os teus dois braços numa janela, sobre flores,
e em tuas mãos o teu rosto,
aprendendo com as nuvens a sorte das transformações.

Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos,
tua boca, onde a passagem da vida
tinha deixado uma doçura triste,
que dispensava palavras.

Ah, falta o silêncio que estava entre nós,
e olhava a tarde, também.

Nele vivia o teu amor por mim,
obrigatório e secreto.
Igual à face da Natureza:
evidente, e sem definição.

Tudo em ti era uma ausência que se demorava:
uma despedida pronta a cumprir-se.

Sentindo-o cobria minhas lágrimas com um sorriso doido.
Agora, tenho medo que não visses
o que havia por detrás dele.

Aqui está o meu rosto verdadeiro,
defronte do crepúsculo que não alcançaste.
Abre o túmulo, e olha-me:
dize-me qual de nós morreu mais.

(Tela de Susan Lott)

8

Hoje! Hoje de sol e bruma,
com este silencioso calor sobre as pedras e as folhas!

Hoje! Sem cigarras nem pássaros.
Gravemente. Altamente.
Com flores abafadas pelo caminho,
entre essas máscaras de bronze e mármore
no eterno rosto da terra.

Hoje.

Quanto tempo passou entre a nossa mútua espera!
Tu, paciente e inutilizada,
contando as horas que te desfaziam.
Meus olhos repetindo essas tuas horas heróicas,
no brotar e morrer desta última primavera
que te enfeitou.

Oh, a montanha de terra que agora vão tirando do teu peito!
Alegra-te que aqui estou,
fiel, neste encontro,
como se do modo antigo vivesses
ou pudesses, com a minha chegada, reviver.

Alegra-te que já se desprendem as taboas que te fecharam,
como se desprendeu o corpo
em que aprendeste longamente a sofrer.

E, como o áspero ruído da pá cessou neste instante,
ouve o amplo e difuso rumor da cidade em que continuo,
- tu, que resides no tempo, no tempo unânime!

Ouve-o e relembra
não as estampas humanas: mas as cores do céu e da terra,
o calor do sol,
a aceitação das nuvens,
o grato deslizar das águas dóceis,
Tudo o que amamos juntas.
Tudo em que me dispersarei como te dispersaste.
E mais esse perfume de eternidade,
intocável e secreto,
que o giro do universo não perturba.

Apenas, não podemos correr, agora,
uma para a outra.

Não sofras, por não te poderes levantar
do abismo em que te reclinas:
não sofras, também,
se um pouco de choro se debruça nos meus olhos,
procurando-te.
Não te importes que escute cair,
no zinco desta humilde caixa,
teu crânio, tuas vértebras,
teus ossos todos, um por um ...

Pés que caminhavam comigo,
mãos que me iam levando, peito do antigo sono,
cabeça do olhar e do sorriso ...

Não te importes. Não te importes ...

Na verdade, tu vens como eu te queria inventar:
e de braço dado desceremos por entre pedras e flores.
Posso levar-te ao colo, também,
pois na verdade estás mais leve que uma criança.

- Tanta terra deixaste, porém sobre o meu peito!,
irás dizendo, sem queixa,
apenas como recordação.

E eu, como recordação, te direi:
- Pesaria tanto quanto o coração que tiveste,
o coração que herdei?

Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?

(Tela de Susan Lott)

...

E hoje era o teu dia de festa!
Meu presente é buscar-te.
Não para vires comigo:
para te encontrares com os que, antes de mim,
vieste buscar, outrora.
Com menos palavras, apenas.
Com o mesmo número de lágrimas.
Foi lição tua chorar pouco,
para sofrer mais.

Aprendi-a demasiadamente.

Aqui estamos, hoje.
Com este dia grave, de sol velado.
De calor silencioso.
Todas as estátuas ardendo.
As folhas, sem um tremor.

Não tens fala, nem movimento nem corpo.
E eu te reconheço.

Ah, mas a mim, a mim,
quem sabe se me poderás reconhecer!

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Aparecimento

John Atkinson


Aparecimento

Divide-se a noite, para que me apareças
e prolongues tua presença entre sonhos cortados.

Vejo o céu que ao longe caminha.
As montanhas respiram a luz das estrelas,
e, na ausência dos homens,
o caule do tempo sobe com felicidade.

Sobre a noite que resvala,
conservo-te imóvel entre meus olhos e a vida.
Penso todos os pensamentos,
e nenhum me auxilia.
E escuto sem querer as lágrimas
que germinam sozinhas,
e seguem sozinhas um subterrâneo curso.

Ah, meu sorriso morreu por tristezas antigas.
Como te hei de receber em dia tão posterior?

Cecília Meireles
in: Mar absoluto

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Saudade


SAUDADE

Saudade. Lua cheia se elevando
Pelos azuis dos céus em noite mansa
Prateando os espaços e espalhando
Sobre a terra a luz branca da bonança.

Saudade. Estrada longa procurando
Achar na mata o verde da esperança.
E o seresteiro ao violão cantando
De um mistério insondável, uma lembrança.

Saudade. O grito agudo de um lamento
Que se mistura ao sibilar do vento
E bate em cheio em nosso coração...

... A sublime visão de quem amamos
Que fugindo de nós nunca alcançamos
Mesmo retida na recordação.


Bernardina Vilar

SAUDADE


SAUDADE

Saudade é a oração que nós rezamos
Com os olhos presos na recordação
Avivando as lembranças que guardamos
Bem no escrínio do nosso coração.

Saudade é a melodia que entoamos,
De uma ária, doce emoção
Angústia dolorosa que provamos
Num momento de atroz separação

Saudade é um lenço branco tremulando
Uma palavra – adeus – na despedida,
Uma lágrima a brilhar em nossos olhos.

Saudade é o dia-a-dia transformando
Um sonho acalentado em nossa vida
Num pesadelo feito só de escolhos.

Bernardina Vilar

SAUDADE


SAUDADE

Saudade! Um campo santo palmilhado
De cruzes toscas entre pobres flores...
Um quadro de amarguras retratado
Na tristeza, na dor, nos dissabores.

Saudade! A voz de um sino pendurado
Na torre da igrejinha, em estertores
E um jasmineiro branco, recurvado,
Flores pendentes, emanando olores.

Saudade! Um ser transpondo de mansinho
A vereda silente de um caminho
Que o conduz ao mais árduo desencanto.

E ali tremente em palpitante anseio
Sente pulsar as convulsões do seio
Que o faz rolar um copioso pranto.

Bernardina Vilar

SAUDADE


SAUDADE


Saudade é um sino triste bimbalhando
Na igrejinha branca de uma aldeia;
E um violão sonoro dedilhando
De uma noite, ao clarão da lua cheia.

Saudade é um rio cheio transbordando
Lançando ao longe turbilhões de areia;
É a cachoeira se precipitando
Jogando as águas no furor que ateia.

Saudade é uma manhã de sol nascente
Com gotinhas de orvalho ornamentando
As flores de um jardim, desabrochadas...

E a gente a contemplá-las docemente
Percebendo que em nós estão faltando
Todas as alegrias desejadas.

Bernardina Vilar

A VOZ DA SAUDADE


A VOZ DA SAUDADE

Se cai a noite plácida, serena,
Tão branca de luar — doce magia...
A carícia da brisa torna a cena,
Num requinte envolvente de poesia.

O azul do céu de uma beleza extrema
Povoado de estrelas irradia,
E qual o encantamento de um poema
Faz palpitar sutil melancolia.

No Coração da mata um mocho pia
Rompendo a solidão num tom dolente,
Como um canto de amarga soledade.

E o coração da gente silencia
Porque mais alto que sua voz ardente
Fala a voz merencória da saudade.

Bernardina Vilar

domingo, 19 de julho de 2009

OUSADIA


Tela: John Atkinson

OUSADIA

Na ânsia de atingir o ignorado
Vai-se o tempo voraz, audacioso
Nas brumas de um enigma mergulhado
Não para de correr, misterioso.

Qual rio a transbordar agigantado
Investe sem cessar, tempestuoso,
Contra tudo que atira no passado
No mais terrível gesto, corajoso.

Com ele tudo passa: a dor, a vida
A alegria, o amor, as esperanças
No arrojo invulgar desta corrida.

Não olha para trás nem retrocede...
E vai deixando apenas as lembranças...
. . . Como quem parte que não se despede!

Bernardina Vilar
In ‘Bom dia, Saudade!’ (1995)

ANALOGIA


Tela: John Atkinson

ANALOGIA

Aos albores bucólicos da aurora
De púrpura é matizado o azul do espaço
E o arrebol tão rápido descora
O infinito, abrangendo em leve embaço.

Vem a neblina. A natureza chora
Um pranto como orvalho tênue, baço,
Mas um rasgão de luz se rompe agora
A terra acobertando num abraço.

Surge o sol, chega o dia e vai passando
Entre pouca alegria e muitas dores,
Sem uma trégua, o incansável tempo.

Nas brumas do passado assim jogando
As nossas ilusões em estertores
Da saudade em passivo desalento.

Bernardina Vilar
In ‘Bom dia, Saudade!’ (1995)

O ÚLTIMO VERSO


Tela: Ernesto Condeixa

O ÚLTIMO VERSO

E quanto pode a ingênua brejeirice
Dum coração de moça, encantador:
- A um gesto teu, sem que eu o pressentisse,
Nasceu-me esta canção de sonhador,
Como um botão que por acaso abrisse
Numa roseira que não dá mais flor...

Paulo Setúbal

Derradeira Saudade


Tela do Pino

DERRADEIRA SAUDADE

PAIXÃO fugaz... Ventura passageira...
Rosa que não colhemos da roseira,
Mas que esteve, no galho, ao nosso alcance.
Ah! Quanta vez, num desespero mudo,
Eu quedo-me a cismar naquilo tudo,
Que encheu de sol nosso cruel romance!

Bendigo ainda os beijos que maldizes,
Que abriram na minh’alma cicatrizes,
Que encheram de ambrosias nossa boca;
Só me consola, nesta dor pungente,
Lembrar que te adorei perdidamente,
Lembrar que me adoraste como louca!

Mudaste muito, eu sei... Mas, com certeza,
Nas horas de saudade e de tristeza,
Em que a alma chora e o coração nos trai,
Hás de pensar em mim de quando em quando,
Com lágrimas nos olhos relembrando
- Toda essa história que tão longe vai!

Paulo Setúbal

Só tu


Tela do Pino

Só tu

Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram,
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!

Mas tu - que rude contraste! –
Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
S6 tu, nest'alma, ficaste,
De todas as que eu amei.

Paulo Setúbal

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Epigrama Número 2


Tela de pissaro

Epigrama Número 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

Cecília  Meireles
Viagem, 1938

Valsa


Tela de Pissaro

Valsa

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


Cecília Meireles
In:"Viagem", 1939.

Embalo


Imagem: Washington Maguetas

Embalo

Adormeço em ti minha vida,
- flor de sombra e de solidão -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...

Cecília Meireles
In Vaga Música, 1942

MARÇO


Imagem: John Atkinson

MARÇO

Que etéreo veneno entorpecente
De sonhos infinitos e tranqüilos
Trazes contigo, límpido março azul
Das transparentes distâncias!

Helena Kolody
In ‘Infinita Luz’

LONGE


Imagem: John Atkinson

LONGE

Às vezes,
Tudo é tão longe de mim...
Meu viver parece uma história
Que alguém sonhou
Há muito tempo,
Num país distante.

Helena Kolody

RESSONÂNCIA


Imagem: John Atkinson

RESSONÂNCIA

Bate breve o gongo.
Na amplidão do templo ecoa
o som lento e longo.

Helena Kolody