sexta-feira, 29 de novembro de 2013

SERÃO PALAVRAS



Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens

Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração

Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.


Eugênio de Andrade,
in "Mar de Setembro"



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

MOMENTO



Esqueço-me
dos anos e dos meses,
E dos dias, das datas, Mas às vezes
Lembro-me de momentos. Rememoro
Um que me fez chorar. E ainda choro.
Recordo-me de uma hora, céu cinzento,
A terra sacudida pelo vento,
Um terrível momento escuro e imundo
Em que me vi perdido e só no mundo,
Sob os trovões, e estremecendo às vezes
Entre relâmpagos e lividezes...
Lembranças, não antigas, mas presentes.
Lembranças, não saudades, as ausentes.
Sem novas esperanças que despontem
O dia de hoje me parece de ontem.
Nenhuma data, em mim, nenhuma festa.
Meu amanhã é o pouco que me resta.
Eu sou o que não fui e o que quis ser.
Já fiz o que me resta por fazer,
E bem no fundo de meu ser obscuro
Lembro-me antigamente do futuro...

Dante MIlano,
in Melhores poemas,
seleção de Ivan Junqueira

terça-feira, 26 de novembro de 2013

SEGUE O TEU DESTINO




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

 Fernando Pessoa/Ricardo Reis,
in Odes

sábado, 23 de novembro de 2013

URGENTE



"Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.

Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro. "


Fernanda de Castro,
in Poesia II

QUANDO TE DÓI A ALMA



"Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,

quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,

quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,

nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor. "



Fernanda de Castro
 in, Poesia II



sexta-feira, 22 de novembro de 2013

NINGUÉM ENVELHECE SÓ POR VIVER MUITOS ANOS...



Ninguém envelhece só por viver muitos anos.
A juventude não é uma época da vida, é um estado da alma.
Não é uma questão de faces lisas, de lábios vermelhos
e joelhos bonitos.
É uma força de querer, uma qualidade da imaginação, um rigor de
emoções e uma frescura da profunda primavera da vida.”

Luna Andermatt [1926-2013]

DO PONTO MAIS ALTO DA MINHYA INFÂNCIA



Do ponto mais alto da minha infância,
talvez se aviste o mar.
Deve haver um lugar,onde os barcos
se encontram para morrer sobre as quilhas.
Quem disse que nunca chega a anoitecer
nos olhos dos que ostentam um grito de aves
no declíneo das pálpebras ?
Com os pés exilados, guardo, no regaço,
os ventos e as sombras, para amparar as dunas:
tão frágeis à hora do poente.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

SE ME QUISEREM AMAR


Se me quiserem amar, terá de ser agora: 
depois, estarei cansada. 
Minha vida 
foi feita de parceria com a morte: 
pertenço um pouco a cada uma, 
para mim sobrou quase nada. 

Ponho a máscara do dia, 
um rosto cômodo e fixo: 
assim garanto a minha sobrevida. 
Se me quiserem amar, terá de ser hoje: 
amanhã, estarei mudada.

LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984




quarta-feira, 20 de novembro de 2013

BUSCA


Mas busca em teu espelho o outro,
o outro que vai contigo.


Antonio Machado,
in Poesia do século XX










domingo, 17 de novembro de 2013

TÃO CEDO PASSA...



"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Fernando Pessoa/Ricardo Reis,
 in "Odes"





quarta-feira, 13 de novembro de 2013

CLAREIRA



Dentro do coração
desenho uma clareira
varrida de luz:
aí desdobro os mapas,
arrumo as bússolas
e todos os instrumentos
para velejar no ar.

Iço as palavras
"amor", "orvalho", "vento"
e recolho as âncoras.

Meu corpo,
livre de toda a gravidade,
já pode voar.

Roseana Murray
in Residência no Ar

MEU PAI, DÁ-ME OS TEUS VELHOS SAPATOS MANCHADOS DE TERRA...



Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias

Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.


VINÍCIUS DE MORAES
In Poesia completa e prosa, 1998
Poesias Coligidas


terça-feira, 12 de novembro de 2013

E O AMOR TRANSFORMOU-SE...



E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome.
Era disto que falavam as mães quando davam conselhos
às filhas e diziam: o amor vem depois.
Era isto o depois.
Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios,
todas as horas do dia e um poema que se dissolve
dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.

José Luís Peixoto,
in Gaveta de Papéis


"AH!"


Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!

Antonio Carlos F. de Brito - Cacaso
In ‘Lero-lero’ (2002)


sábado, 9 de novembro de 2013

SURPREENDIDA POR UM CAMINHO SEM TEMPO



Surpreendida por um caminho sem tempo,
deixo que a lua se instale em minha pele,
lasciva e húmida. Habito uma ilha suspeita
de servir de abrigo a veleiros perdidos.
E digo: há um mar horizontal na solidão
de uma mulher, com as mãos cansadas
de sulcar distâncias em caminhos de espuma.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

DIA DE ANOS



Se os pássaros sobrevoam as palavras
para saudar o dia, é porque há festa
nos olhos de quem nasce quantas vezes é preciso.
Quase se adivinha um tempo de lembranças
como um pretexto, uma fuga, um alibi
para escapar à fadiga dos sonhos minguados.
É então que os amigos trazem afectos
que o tempo não corrompe
e o vento se torna solidário das manhãs
por onde se regressa à infância.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996






SÓ NOS PERTENCE O GESTO QUE FIZEMOS



Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O POÇO




Com minhas frágeis
e frias mãos
Cavei um poço
no fundo do horto
da solidão
Cavei um poço
mas bem profundo
com minhas mãos.

- Henriqueta Lisboa,
in "A face lívida"


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DESENCANTO




Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota à gota, do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca.

Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira
In: "A cinza das horas"

MINHA CIDADE




Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
umas das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.

Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.

Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.

Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.

Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.

Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha. 


Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas
ou Cora Coralina
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965





 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

TODA A POESIA É LUMINOSA,




Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.


Eugénio de Andrade,
in Os Sulcos da Sede

domingo, 3 de novembro de 2013

VIAJAM AS PALAVRAS



Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação do trem sacode
em minhas mãos.

A paisagem me vem oferecer seus buquês roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.

Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.

Só que depois, em minha memória, que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.

O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.

O trem de ferro desloca o sentido das coisas.

Viajam as palavras.



Cassiano Ricardo
Em "O sangue das horas"

EXAUSTO



Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

- Adélia Prado,
in "Bagagem"

BILHETE



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mario Quintana
In Nariz de Vidro

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A PALAVRA MÁGICA



Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
In Discurso de Primavera, 1977




SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA



Perdi o bonde e a esperança. 
Volto pálido para casa. 
A rua é inútil e nenhum auto 
passaria sobre meu corpo. 

Vou subir a ladeira lenta 
em que os caminhos se fundem. 
Todos eles conduzem ao 
princípio do drama e da flora. 

Não sei se estou sofrendo 
ou se é alguém que se diverte 
por que não? na noite escassa 

com um insolúvel flautim. 
Entretanto há muito tempo 
nós gritamos: sim! ao eterno. 


 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 
In Brejo das almas, 1934