sexta-feira, 30 de maio de 2014

INSTANTE



Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)

JARDIM




Alguém diz:
“Aqui antigamente houve roseiras” —
Então as horas
Afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.


Sophia de Mello Breyner Andresen
de Poemas Escolhidos

FELICIDADE



Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto

ACALANTO



Exaustos de fotografar a vida
em seus sessenta aspectos por minuto,
adormecem os olhos no aconchego
de crepúsculo antigo e sempre novo:
as imagens do dia, prisioneiras
entre as dobras das pálpebras, discutem
argumentos possíveis para um sonho.


Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).

quinta-feira, 29 de maio de 2014

BIOGRAFIA



Tive amigos que morriam, outros que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo

quarta-feira, 28 de maio de 2014

ESTE LIVRO...


 
Este livro é de mágoas. Desgraçados 
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo! 
Somente a vossa dor de Torturados 
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo. 
 
Este livro é para vós. Abençoados 
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo! 
Bíblia de tristes... Ó Desventurados, 
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo! 
 
Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades! 
Livro de Sombras... Névoas e Saudades! 
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...) 
 
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água, 
Chorai comigo a minha imensa mágoa, 
Lendo o meu livro só de mágoas cheio! ... 
 
 
Florbela Espanca
In ‘Livro de Mágoas’
 

EU...


 
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ... 
 
Sombra de névoa tênue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!... 
 
Sou aquela que passa e ninguém vê... 
Sou a que chamam triste sem o ser... 
Sou a que chora sem saber por quê... 
 
Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver, 
E que nunca na vida me encontrou! 
 
 
Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’

DEDICATÓRIA


 
É só teu o meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!
 
Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)
 

ALBA



Não faz mal
que amanheça devagar.
As flores não têm pressa,
nem os frutos.
Sabem 
que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.

Não faz mal 
que, devagar,
o dia vença a noite
em seus redutos
do Leste.

O que importa
é ter enxutos os olhos
e a intenção de madrugar.


Geir Campos
In Cantigas de Acordar Mulher (1964)

SAFRA



Como um viticultor ocioso come
em pleno outono, uma por uma, as uvas
do cacho que ele viu nascer, pesar,
sob os olhos do sol e o próprio olhar;
e em que, mais demorando o paladar
na espera aberta entre o prazer e a fome,
já reconhece o gosto bom das chuvas

lavando os fornos do verão distante;

e, como uma saudade só, o sabor
da terra presa às mãos grossas de suor
— assim viver a vida, instante a instante.

Geir Campos 
In Cantigas de Acordar Mulher (1964)




A ÁRVORE



Ó árvore, quantos séculos levaste 
a aprender a lição que hoje me dizes: 
o equilíbrio, das flores às raízes, 
sugerindo harmonia onde há contraste? 

Como consegues evitar que uma haste 
e outra se batam, pondo cicatrizes 
inúteis sobre os membros infelizes? 
Quando as folhas e os frutos comungaste? 

Quantos séculos, árvore, de estudos 
e experiências — que o vigor consomem 
entre vigílias e cismares mudos — 

demoraste aprendendo o teu exemplo, 
no sossego da selva armada em templo? 
Dize: e não há esperança para o Homem? 


Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).

TAREFA



Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar — 
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

Geir Campos 
In ‘Canto Claro e Poemas Anteriores.(1957)


terça-feira, 27 de maio de 2014

MÚSICA



"Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos."


Anna Akhmátova,
in Antologia poética

SEPARAÇÃO



Nem semanas nem meses - anos
levamos nos separando. Eis, finalmente,
o gelo da liberdade verdadeira
e as cinzentas guirlandas na fachada dos templos.

Não mais traições, não mais enganos,
e não me terás mais de ficar ouvindo até o amanhecer,
enquanto flui o riacho das provas
da minha mais perfeita inocência.


Anna Akhmátova,
in Antologia poética

domingo, 25 de maio de 2014

AO SONO



Rebanho de ovelhas que lentamente passa
Uma de cada vez, o som da chuva e o farfalhar
Das folhas ao vento, abelhas, cascatas e o mar,
Prados, lenços d’água e o céu que esvoaça;
Sobre eles divaguei, um por um e ainda estou
Desperto! Logo os pássaros cantando
Nas árvores do pomar estarei escutando,
E o primeiro trinado do cuco que lá pousou.
Ontem e nas duas outras noites foi assim
Sono! Com todos os ardis não te pude receber:
Poupes-me nesta noite, vem a mim
Sem ti, que seria do encanto do alvorecer?
Vem, barreira entre o dia e a noite, enfim,
Pai do fresco pensar e do saudável viver!


William Wordsworth
in O olho Imóvel Pela Força da Harmonia










sábado, 24 de maio de 2014

SE




Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!


Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A CONCHA




Talvez te seja inútil minha vida,
Noite; fora do golfo universal,
Como concha sem pérola, perdida,
Me arremessaste no teu areal.

Move as ondas, como indiferente,
E cantas sem cessar sua melodia.
Mas hás de amar um dia, finalmente,
A mentira da concha sem valia.

Jazerás a seu lado pela areia
E pouco faltará para que a escondas
Nessa casula onde ela se encadeia
À sonora campânula das ondas,

E as paredes da frágil concha, pouco
A pouco, se encherão do eco da espuma,
Tal como a casa de um coração oco,
Cheio de vento, de chuva e de bruma...


Óssip Mandelstam,
in Poesia da Recusa tradução de: 
Augusto de Campos



O SOM SECO



O som seco e surdo desta
Fruta caindo
No murmúrio sem fim do
Oco silêncio da floresta.


Óssip Mandelstam,
in "Poesia da Recusa" tradução de: 
Augusto de CAMPOS, . 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

POEMA-2




Atravesso o jardim, de manhã,
até beber o último trago de névoa.

As estátuas empurram-me com
os seus braços brancos.

Um cisne confunde-se
com um jarro;

mas não sei se o lago
se confunde com ele.

No banco, um fantasma
estende-me uma chávena de café.

No fundo, discutimos ambos
um problema de existência.

É que nem ele nem eu
temos a certeza um do outro

quando a cidade, no Outono,
se veste de nuvem.

NUNO JÚDICE,
in O Movimento do Mundo

quarta-feira, 21 de maio de 2014

CANÇÃO



Passa o vento de outono
derrubando a tarde:
caem torres douradas,
folhas azuis caem.

E passa o tempo louco
derrubando os sonhos:
caem torres de amor,
trêmulas folhas caem.

No vazio cai,
sem fim, meu coração.
Nada pode salvar-me.
Deus sabe que estou morto.

Sobre mim passa um rio
de esquecimento sem remédio.
Acima cruzam flores.
Sei que ninguém me ouve.


Eduardo Carranza
In: Antologia Poética

terça-feira, 20 de maio de 2014

AFÃ



A vida, essa experiência deletéria
do Ser, que na existência se complica.

A vida, esse impossível que na etérea
face do Cosmos uma ruga implica.

A vida, este sofrer, esta miséria
que uma esperança absurda santifica.

A vida, esta ilusão, maia, aura, aérea
construção que no engano se edifica.

A vida, ávida vide em que a venérea
ave da áurea ventura nidifica.

A vida, esse esplender, essa cinérea
dor de ter sido luz que o céu abdica.

A vida, essa aventura da matéria,
que, no afã de ser Deus, nos multiplica.

Anderson Braga Horta,
in O vento e eu

segunda-feira, 19 de maio de 2014

PAZ



"Onde encontro a paz? ... 
Pergunto-me a todo instante. 
Procurei-a há tempos idos 
Num lugarejo distante... 
Procurei-a num largo anfiteatro 
E ainda não achei... 
Procurei-a, desta vez, num circo 
E também não encontrei... 
Então pensei: Está no lar!... 
Mas também lá não estava. 
E pus-me novamente a buscá-la 
Nos canteiros floridos, no pôr-do-sol, 
Em todas as maravilhas do Universo 
E nada consegui encontrar... 
Um dia, embaraçada com tanta busca, 
Perdi-me dentro de mim 
E... Qual não foi a minha surpresa! 
Lá estava ela... 
A sorrir."

Amélia Rodrigues

A VIDA É UMA CASA QUE CONSTRUÍMOS...



[...]
A vida é uma casa que construímos com as
próprias mãos, criando calos, esfolando
joelhos, respirando poeira.
Levantamos alicerces, paredes, aberturas
e telhado. Podem ser janelas amplas para
enxergar o mundo, ou estreitas para nos
isolarmos dele. Pode haver jardins, pátio,
por pequenos que sejam, com flores, com
balanços, para a alegria; ou só com lajes
frias, para melancolia.
Vendavais e terremotos abalam qualquer
estrutura, mas ainda estaremos nela, e
ainda poderemos consertar o que se
desarrumou.
[...]

Lya Luft,
in O tempo é um rio que corre

sábado, 17 de maio de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



“Penetrei em um mundo cuja novidade me estarreceu.
Aprendi o que separa o desespero da melancolia,
e a secura, da serenidade; conheci as hesitações
do coração, seus delírios, o brilho das grandes
renúncias e os murmúrios subterrâneos da esperança.
Exaltava-me como nas noites em que contemplava
o céu cambiante por detrás das colinas azuis; eu era
a paisagem e o olhar: só existia por mim e para mim.
Felicitava-me pelo exílio que me impelira para tão
grandes alegrias; desprezei os que a ignoravam e
espantei-me por ter podido viver tanto tempo sem
elas.

Simone de Beauvoir,
in Memórias de Uma Moça bem-comportada

QUERO DEUS COMO UM ARTISTA


foto by Maria Amalia Moraes
primeira Igreja Batista de Curitiba


“ Quero Deus como um artista que cata os cacos
do meu vitral , partido por pedradas ao acaso , 
e os coloca de novo na janela da catedral, para que 
os raios de Sol de novo por ele passem .”

Rubem Alves , 
in “ Na morada das palavras”



sexta-feira, 16 de maio de 2014

ASSIM É QUE A VIDA DEVE SER...



"...assim é que a vida deve ser,
quando um desanima, o outro agarra-se às
próprias tripas e faz delas coração"

José Saramago,
In A Caverna

NÓS ADOECEMOS...



"Nós adoecemos da ausência de amigos.
Precisamos desse reconhecimento mútuo,
pessoa a pessoa: um reconhecimento não 
fundado no confronto ou na competição,
mas no afeto; não determinado meramente
pelas leis da justiça ou pelos vínculos
de sangue, mas assente na gratuidade.

O olhar do amigo é uma âncora. A ela nos
seguramos em estações diferentes da vida
para receber esse bem inestimável de que 
temos absoluta necessidade e que,
verdadeiramente, só a amizade nos pode dar:
a certeza de que somos acompanhados e
reconhecidos. Sem isso a vida é uma baça
surdina destinada ao esquecimento."

José Tolentino Mendonça, 
em "Nenhum Caminho será Longo"

terça-feira, 13 de maio de 2014

QUANDO PARTIU...



 Quando partiu, levava as mãos no bolso,
 a cabeça erguida. Não olhava para trás,
 porque olhar para trás era uma maneira de ficar
 num pedaço qualquer para partir incompleto,
 ficado em meio para trás. Não olhava, pois,
 e, pois não ficava. Completo, partiu.


 Caio Fernando Abreu


sábado, 10 de maio de 2014

A MÃE DA GENTE



A  mãe  da  gente  é  o  mais   inevitável ,
inefugível , imprescindível , amável ,
às  vezes   exasperante  e carente  ser  que ,
seja   qual  for  a  nossa idade  , cultura , país ,
etnia , classe  social  ou  cultural , 
 nos fará  a  mais  dramática  e pungente falta
quando  um  dia nos  dermos  conta
de  que  já  não   temos  ninguém
a  quem  chamar "  Mãe "


Lya  Luft  ,
na  crônica  "  A  mãe da gente "


quarta-feira, 7 de maio de 2014

MILAN KUNDERA



"Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões
é melhor porque não há comparação possível.
Tudo se vive imediatamente
pela primeira vez, sem preparação como se um actor
entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que vale
a vida se o primeiro ensaio da vida é já a própria vida?"

Milan Kundera, 
(A Insustentável Leveza do Ser)






segunda-feira, 5 de maio de 2014

MIA COUTO


"Só há um modo de enfrentar as más lembranças: 
é mudar radicalmente de viver, decepando raízes
e fazer as pontes desabarem."

Mia Couto
no livro "O Outro Pé da Sereia"







MIA COUTO



“Não são os grandes traumas que fabricam a grande maldade. 
São, sim, as miúdas arrelias do quotidiano,esse silencioso
pilão que vai esmoendo a esperança, grão a grão.”

Mia Couto
in "O Outro Pé da Sereia"






quinta-feira, 1 de maio de 2014

CREPÚSCULO DE ABRIL



Longa pincelada de cinábrio, no poente,
sublinha os nimbos gris.

A púrpura veludosa do amaranto
veste os jardins do outono.

Dorme a névoa dos vales.
No coração transido, a noite desce.

Helena Kolody

CITAÇÃO



E se me perguntarem como estou, eis a resposta:
Estou indo. Sem muita bagagem.
Pesos desnecessários causam sempre dores desnecessárias.

Caio Fernando Abreu