domingo, 30 de novembro de 2014

RUA




Procuro a rua
que ainda me resta:
é longa, é alta,
não é essa. 

Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta. 

Em cada esquina
havia festa:
é clara, é vasta,
não é essa. 

Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta. 

Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.


Cecília Meireles,
in Poesia Completa
Sonhos 

CÂNTICO




Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto, 
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
te ponha em tudo, 
como Deus.

Cecilia Meireles
In: Cânticos I




sexta-feira, 28 de novembro de 2014

MIA COUTO




"Isso ele me ensinara: o segredo é demorar o sofrimento, 
cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe,
diluto, no infinito do tempo"

Mia Couto 
in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, 2002




O TEMPO MOVE-SE...





«O tempo move-se, some-se. À janela do quarto,
o homem vê esse movimento do tempo a sumir-se.
Olha para os arrozais verdes do verão que passam 
de uns dias para os outros, mudando, amadurecendo;
as laranjas que se tornam amarelas quando a 
terra arrefece devagar, por dentro; os sobreiros
de repente em carne viva."


Herberto Helder, 
in Os passos em volta


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

INTERCORRÊNCIA




Entre o gesto e a sombra,
há luz e distância
e uma geometria
de ângulos e planos.

Helena Kolody
(in Tempo, 1970)

NOITE




Luar nos cabelos.
Constelações na memória.
Orvalho no olhar.


- Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

POEMA HEBRAICO




"Quando estamos nos degraus mais baixos 
da escada do pesar , nós choramos .
Quando chegamos à metade dela ,nós emudecemos .
Mas quando alcançamos o topo da escada 
do pesar ,nós convertemos a tristeza em canto ."


Poema hebraico


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MONÓLOGO



Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.


Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!


É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,


qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.



Dante Milano,
In melhores Poemas


domingo, 23 de novembro de 2014

AS NUVENS





As nuvens
não têm preocupação estética.
Sou eu
que as organizo
para meu regozijo esperto.

Elas simplesmente se desfazem
e nem disto sabem
mas eu as estudo, eu as apuro
como Turner
e alguns poetas
que organizaram  o entardecer.

A natureza
não tem preocupações  morais.
A natureza não mata
nem odeia.

Ou melhor:

mata e ama
de igual maneira
e todo movimento
é  desejo
de viver.

A morte
é apenas uma forma estranha
da vida

se refazer.

Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha 



sábado, 22 de novembro de 2014

CEM PESSOAS





Em cada cem pessoas

Aquelas que sempre sabem mais:
cinquenta e duas.

Inseguras de cada passo:
quase todo o resto.

Prontas a ajudar,
desde que não demore muito:
quarenta e nove.

Sempre boas,
porque não podem ser de outra maneira:
quatro — bem, talvez cinco.

Capazes de admirar sem invejar:
dezoito.

Levadas ao erro
pela juventude (que passa):
sessenta, mais ou menos.

Aquelas com quem é bom não se meter:
quarenta e quatro.

Vivem com medo constante
de alguma coisa ou alguém:
setenta e sete.

Capazes de felicidade:
vinte e alguns, no máximo.

Inofensivos sozinhos,
selvagens em multidões:
mais da metade, por certo.

Cruéis,
quando forçados pelas circunstâncias:
é melhor não saber
nem aproximadamente.

Peritos em prever:
não muitos mais
que os peritos em adivinhar.

Tiram da vida nada além de coisas:
trinta
(mas eu gostaria de estar errada).

Dobradas de dor,
sem uma lanterna na escuridão:
oitenta e três,
mais cedo ou mais tarde.

Aqueles que são justos:
uns trinta e cinco.

Mas se for difícil de entender:
três.

Dignos de simpatia:
noventa e nove.

Mortais:
cem em cem –
um número que não tem variado.


Wislawa Szimborska
in Poemas, tradução de Regina Przybycien


AGRADECIMENTO




Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar

Não espero por eles
andando da janela à porta

Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo
o que o amor nunca perdoaria

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

 As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

 É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
comum horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

 “Não lhes devo nada” –
diria o amor
sobre essa questão aberta.


Wislawa Szymborska 
In: Poemas, ed. Companhia das Letras.



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

QUISERA...



Quisera o canto jubiloso
que corresse por dentro de minhas palavras.
Como  um rio destampado corresse para os
campos.
 
Manoel de Barros
In Menino do mato




segunda-feira, 17 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados
num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a
terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para
que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas
tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam
o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os
pássaros - Em vão... porque até na cidade, a primavera
é primavera.
 Leon Tolstói,
em "Ressurreição" 





domingo, 16 de novembro de 2014

OS MEUS LIVROS




Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.


Jorge Luis Borges
in "A Rosa Profunda"


A MULHER DE LOT



Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de idéia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus _ simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


WISLAWA SZYMBORSKA _
tradução: Regina Przybycien


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

JARDIM



 
"Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.
 
Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.
 
Um murmúrio de omissões, um cântico de ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz."

 
António Ramos Rosa,
in "Volante verde"

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

USO A PALAVRA PARA COMPOR MEUS SILÊNCIOS



Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios

Manoel de Barros
in Memórias Inventadas

19/12/1916 - 13/11/2014


domingo, 9 de novembro de 2014

FUTURO




É preciso que exista, enfim, uma hora clara,
depois que os corpos se resignam sobre as pedras
como máscaras metidas no chão.

Por entre as raízes, talvez se veja, de olhos fechados,
como nunca se pode ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminação.

Perguntareis: “Mas era aquilo, o teu silêncio?”
Perguntareis: “Mas era assim, teu coração?”

Ah, seremos apenas imagens inúteis, deitadas no barro,
do mesmo modo solitárias, silenciosas,
com a cabeça encostada à sua própria recordação.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto





 

CITAÇÃO


(foto by Sebastião Salgado)

 
“A humanidade andou buscando, durante muito tempo,
uma linguagem universal. Falou-se do latim, no início;
depois, do inglês; houve um momento em que se tentou 
criar uma língua – o esperanto –, mas a linguagem
universal foi criada. É a linguagem da imagem.
E a fotografia é seu vetor principal.
Quando se escreve nesta linguagem ... 
Todo mundo compreende.”

- Sebastião Salgado

 



CITAÇÃO


(foto by Sebastião Salgado)

"Estas Américas Latinas tão misteriosas
e sofridas, tão heroicas e nobres."

- Sebastião Salgado


ABRAÇA-ME



Abraça-me.

Sem motivo, sem explicação.
Abraça-me por um abraço.
Por desejo de sentires o meu coração.
Por vontade de beijares a minha alma.
Abraça-me.
Apenas…

Ana Alvarenga





quarta-feira, 5 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



"É possível desafiar os conceitos que imperam,
desatar fios que nos enredam, limpar o pó desse
uniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas
decoradas, a tirania do que temos de ser ou fazer.
Pronunciar a nossa própria alforria: vai ser livre,
vai ser você mesmo, vai tentar ser feliz , seja lá
o que isso for."

Lya Luft,
in O tempo é um rio que corre


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

URGÊNCIA DE ABRAÇOS



Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que abriguem olhares cansados
abraços que respirem profundamente as dores alheias

abraços que bebam lágrimas e palavras (in)contidas

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que transportem esperança e serenidade
abraços que levem sorrisos e sílabas quentes
abraços que guardem em si todos os futuros do amanhã
abraços que curem e que amem e que respeitem

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que libertem e ousem outros abraços
abraços que respirem e deixem poemas nos outros abraços
abraços que congreguem todos os afectos
abraços que silenciem tristezas e deixem abraços abertos
abraços que se fechem nos outros abraços
abraços que se confundam e se tatuem e se fundam noutros abraços

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços !


ANTÓNIO BARROSO CRUZ 
(a publicar)







domingo, 2 de novembro de 2014

ELEGIA




Destes obscuros canteiros da alma,
destes bosques do coração,
desta melancolia da morte
sobem as vozes, com ramos de lágrimas.


Assim partis,
sem terras, ares, mares:
só pela invisibilidade,
sem saberdes sequer que estais partindo.


Não nos podemos mais saudar nem despedir,
ó amigos,
nem repartir o pão da nossa mesa
e a luz dos nossos sonhos.


Sois agora como estátuas 
em solidões silenciosas,
entre solenes paredes de saudade,
em sítios suspensos do pensamento.


Mais longe que aquela nuvem.
Mais longe que qualquer céu.
Podemos pensar mais longe.
E quereríamos que um dia voltásseis,


para sermos outra vez amigos.
(Ramos de lágrimas, as vozes.) 



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)