terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NA MESA




Sobre a toalha, o pão,
o bule, as xícaras, o café,
confabulam. Que dizem
no seu silêncio de coisas
tocadas de esperança,
da latente esperança
da manhã? Dir-se-ia
que se sentem ligados
à vida - ou que na vida
se irmanam, se confundem,
pousados sobre a mesa
como em seu próprio mundo,
pousados no silêncio
como se tudo fosse,
para eles, a dádiva
fascinante, translúcida.

A um canto, solitária,
uma faca os espia.

Alphonsus de Guimaraens  Filho

domingo, 22 de fevereiro de 2015

POEMA À BOCA FECHADA





Não direi: 
Que o silêncio me sufoca e amordaça. 
Calado estou, calado ficarei, 
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam, 
Se represam, cisterna de águas mortas, 
Ácidas mágoas em limos transformadas, 
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi: 
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, 
Palavras que não digam quanto sei 
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, 
Nem só animais bóiam, mortos, medos, 
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam 
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi, 
Crispadamente recolhido e mudo, 
Que quem se cala quando me calei 
Não poderá morrer sem dizer tudo.


José Saramago,
In OS POEMAS POSSÍVEIS



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

INFÂNCIA


 
                 
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se agora.


Guilherme de Almeida





VELHICE



 
Uma folha morta.
Um galho, no céu grisalho.
Fecho a minha porta.

Guilherme de Almeida

HORA LILÁS...




Hora lilás, da cor desta saudade
Que não me deixa mais o coração,
Hora em que a alma toda se me invade
Só de tristeza e de desolação ...

Hora em que eu lembro a minha pouca idade
E a minha tão cruel desilusão ...
Tudo se esvai na bruma da saudade,
Essa tão doce e triste cerração ...

Hora lilás, da cor que me entristece,
Desta saudade que jamais esquece
Meu coração cansado de sofrer;

Hora em que eu vivo a vida já vivida,
Hora lilás, da cor da minha vida,
Pois é saudade só o meu viver.



Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas












quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

DESCENDÊNCIA




Ave desgarrada,
há muito, voo sozinha,
nesse espaço vazio,
em busca do ninho sonhado.

Já nem mais sei
quem sou.

Apenas descubro
que tenho por mãe a humanidade...
e o universo sabe que é meu pai


Adélia Maria Woellner
in Tempo de Escolhas


VIOLETA





Sempre teu lábio severo
Me chama de borboleta!
- Se eu deixo as rosas do prado
É só por ti - violeta!

Tu és formosa e modesta,
As outras são tão vaidosas!
Embora vivas na sombra
Amo-te mais do que às rosas.

A borboleta travessa
Vive de sol e de flores.
- Eu quero o sol de teus olhos,
O néctar dos teus amores!

Cativo de teu perfume
Não mais serei borboleta;
- Deixa eu dormir no teu seio,
Dá-me o teu mel - violeta



Casimiro de Abreu
 
 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

AS ROSAS




(XVI)

Não falemos de ti. É inefável 
segundo a tua natureza. 
Outras flores ornamentam a mesa: 
tu a transfiguras.

Num simples vaso és arranjo, 
e eis que tudo muda: 
é talvez a mesma frase, 
mas cantada por um anjo.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)




quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

EXCERTO LITERÁRIO




Resignava-me dificilmente a voltar para Paris.
Subia na sacada: só via telhados; o céu reduzia-se 
a um lugar geométrico, o ar não era mais perfume
nem carícia, confundia-se com o espaço nu. Os
ruídos da rua não me diziam nada. Aí ficava, de 
coração vazio e lágrimas nos olhos.

Simone de Beauvoir,
in Memórias de uma moça bem-comportada



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

EXCERTO LITERÁRIO




Porque tinha suas ausências.
 O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas.
 Uma tristeza mais antiga que o seu espírito.
 Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos.
 A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia
 fazer. Só esperar.

Clarice Lispector,
in Felicidade Clandestina



segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

CITAÇÃO




Ele estava só.
Estava abandonado, feliz, 
perto do selvagem coração da vida.

– James Joyce,
Da epígrafe do livro 
de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem






segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A PALAVRA





A palavra rasga o silêncio
Da folha
Verte a ansiedade 
Que acende a lâmpada
Atraindo os insectos
Da verve.

E um pó de asas
Se espalha
Pelo branco da folha.

Cinzas
De amedrontadas dúvidas
E de infalíveis certezas.


Joaquim Monteiro

domingo, 1 de fevereiro de 2015

EXCERTO LITERÁRIO...




"Se me pedissem para sugerir um símbolo gráfico para
 a idéia de Tempo, eu indicaria sem hesitação a imagem
 duma oliveira. Por quê? Talvez por  causa de suas
 conotações bíblicas, pelo aspecto sofrido de seus troncos
 e galhos e por tudo quanto o óleo que o fruto dessa 
 árvore produz tem a ver com a vida e a morte: o óleo do
 batismo, o óleo da extrema-unção, enfim, o óleo que
 mantém acesas as lâmpadas, não só a dos templos,
 mas todas as lâmpadas do mundo que iluminam a noite
 dos homens."


- Erico Verissimo, 
em Solo de Clarineta, 1975

EXCERTO LITERÁRIO





“ E quando tudo me aborrecer de verdade ,
quando eu ficar cansada de minhas neuroses
e manias , quando as pessoas estiverem demais
distraídas , a paisagem perder a graça ,
a mediocridade instalar seu reinado e
anunciarem o coroamento da burrice ,
vou espiar o letreiro que fala de uma riqueza
disponível para qualquer um , e que botei
como descanso de tela no meu eternamente
ligado computador :

ESCUTE A CANÇÃO DA VIDA"


Lya Luft , 
in “ A riqueza do mundo “