quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ESPERANÇA




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
vive uma louca chamada Esperança
e ela pensa que quando todas as sirenas
todas as buzinas
todos os reco-recos tocarem,
atira-se 
e
- ó delicioso vôo
será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá, então,
(é preciso explicar-lhes tudo de novo!)
ela lhes dirá, bem devagarinho, para que não esqueçam nunca:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


___Mario Quintana,
 in Baú do Espantos pg 77

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VAI, ANO VELHO





1

Vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum , prá trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,,
a casa e o coração.

Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.


2

Vem Ano Novo, vem veloz
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz, moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
-de utopia.

Vem na areia da ampulheta como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se

se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol da gema no Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

3

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.

Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.

Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso  Romano de  Sant’Anna







segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

GRITO




A única certeza que me cabe
quando olho minhas mãos
que envelhecem comigo
embora às vezes pareçam
tão separadas do corpo
pássaros que tivessem perdido
todo o resto do bando
a única certeza é de que o grito
que nasce com cada um
o primeiro grito
tem que ser ouvido
com seu timbre ainda impregnado
de infinito e dores ancestrais
e esse grito se espalha
em tudo que se faz


Roseana Murray

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

'XII'




Dezembro acende as luzes
em ricos pinheiros de natal.
Mas é naquela árvore
solitária nas grotas
ou à beira da estrada
que se agregam bem-te-vis
e tagarelam maritacas.
Mangueira, Santa Bárbara,
Pata-de-vaca
- ao pássaro tanto faz:
folhagens são mimos anônimos.

Eu insisto em um Deus
que se projeta em tronco
e esparrama os braços
para acolher os seus.


F.Campanella
Poema da série 'Efemérides'

QUINTANARES





O Natal foi diferente
porque o Menino Jesus
disse à Senhora Sant'Ana:
"Vovozinha, eu ja não gosto
das canções de antigamente:
cante as do Mario Quintana!"

Viram-se então os anjinhos
de livro aberto nas mãos
deslizar no ouro dos ares.
Estudaram nova solfa
pelos celestes caminhos
e ensaiaram quintanares.

Deixaram cair os versos
que já sabiam de cor
pelos telhados das casas.
E o milagre das cantigas
foi que até seres perversos
amanheceram com asas.

Cecília Meireles 
Rio de Janeiro. Dezembro de 1946.


sábado, 20 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



“Quando vozes de crianças se ouvem na relva,
E risos se ouvem nas colinas
Meu coração descansa no meu peito,
E todo o resto fica sereno”.

William Blake ,
in Canções da Inocência e da Experiência


CITAÇÃO




"Protegei-me da sabedoria que não chora, 
da filosofia que não ri e da grandeza que
não se inclina perante as crianças."

Khalil Gibran




MINHA VIDA NÃO É...




 
Minha vida não é esta hora a pique
em que me vês tão afobado.
Eu sou uma árvore em frente ao interior de mim.
Sou uma só de minhas muitas bocas
e aquela que primeiro há de fechar-se.
 
Sou aquele intervalo entre duas notas
que só dificilmente se harmonizam,
e é quando o tom da morte vai mais alto.
 
Mas no escuro intervalo as duas soam,
trêmulas ambas.
 
E é bonito o canto.
 
 
 
Rainer Maria Rilke,
in Livro de horas.
 Trad. Geir Campos

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

LUZ ACESA




Além, a luz acesa
sugere a família
em torno à grande mesa;
sugere a vigília
do fazendeiro, agora
com os seus reunido;
sugere a grave hora
em que um comovido
silencio se projeta
em torno à grande mesa,
como essa luz quieta
no descampado acesa.


Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

NATAL


 
 
Não ouço, daqui, o repicar dos sinos,
nem os coros de natal, nem, sequer,
o alvoroço, que o meu riso de criança
transportava. Eu sei : a infância
perdeu-se no lugar onde nasci.
Contudo, a um canto da memória,
está, ainda, resistindo ao sono,
a menina que fui. E, ano após ano,
aguardo, com ela, um menino jesus,
para sempre adormecido no meu peito.
 
 
Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005
 

domingo, 14 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERARIO



A gente ama não é a pessoa que fala bonito.
 É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita 
quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta.
 É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta
 que ele termina. Não aprendi isso nos livros.
 Aprendi prestando atenção."

In: O AMOR QUE ACENDE A LUA)
Rubem Alves



sábado, 13 de dezembro de 2014

INTACTA MEMÓRIA




Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

II




Que saudades de ti, que estás distante,
tão distante, mas tanto, que parece
que estás doente, quase agonizante...


E, Porque estás agonizante,
minha saudade toma a forma de uma prece...



Onestaldo de Pennafort,
in Poesia







segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




"Vou abrir a porta e ele vai entrar. 
Vai me abraçar, sorrir para mim, vai pegar minha mão,
e quem sabe pela primeira vez vamos de verdade falar.
Ou calar – num silêncio melhor do que qualquer palavra."

Lya Luft 
in “O silêncio dos amantes”





quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

EXCERTO...





“ Eu me quisera sem limites:
era informe como o infinito”.

Simone de Bauvoir ,
in Memórias de uma Moça bem Comportada









EXCERTO LITERÁRIO





Minha experiência humana era curta; sem um bom ângulo
de luz nem palavras adequadas, não aprendia tudo.
A natureza descobria-me,visíveis, tangíveis, uma 
porção de maneiras de existir de que nunca me aproximara.
Admirava o isolamento soberbo do carvalho que
dominava o parque-paisagem; apiedava-me da solidão em
comum das folhinhas de relva. Aprendi as manhãs
ingênuas, e a melancolia crepuscular, os triunfos e 
os declínios, as renovações e as agonias.
Algo um dia se acordaria em mim com o perfume das
madressilvas.Todas as noites ia sentar-me entre as
mesmas urzes e contemplava as ondulações azuladas 
das colinas; todas as tardes. o sol deitava-se
atrás do mesmo monte: mas os vermelhos, os rosa,
os carmins, os violeta não se repetiriam nunca...

Simone de Beauvoir,
in Memórias de uma Moça bem-comportada



terça-feira, 2 de dezembro de 2014

ESTA GENTE

(imagem Tarsila do Amaral - Operários)


Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 
 
Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 
 
Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 
 
Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 
 
E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 
 
Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 

 
 
 Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in “Geografia”,


domingo, 30 de novembro de 2014

RUA




Procuro a rua
que ainda me resta:
é longa, é alta,
não é essa. 

Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta. 

Em cada esquina
havia festa:
é clara, é vasta,
não é essa. 

Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta. 

Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.


Cecília Meireles,
in Poesia Completa
Sonhos 

CÂNTICO




Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto, 
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
te ponha em tudo, 
como Deus.

Cecilia Meireles
In: Cânticos I




sexta-feira, 28 de novembro de 2014

MIA COUTO




"Isso ele me ensinara: o segredo é demorar o sofrimento, 
cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe,
diluto, no infinito do tempo"

Mia Couto 
in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, 2002




O TEMPO MOVE-SE...





«O tempo move-se, some-se. À janela do quarto,
o homem vê esse movimento do tempo a sumir-se.
Olha para os arrozais verdes do verão que passam 
de uns dias para os outros, mudando, amadurecendo;
as laranjas que se tornam amarelas quando a 
terra arrefece devagar, por dentro; os sobreiros
de repente em carne viva."


Herberto Helder, 
in Os passos em volta


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

INTERCORRÊNCIA




Entre o gesto e a sombra,
há luz e distância
e uma geometria
de ângulos e planos.

Helena Kolody
(in Tempo, 1970)

NOITE




Luar nos cabelos.
Constelações na memória.
Orvalho no olhar.


- Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

POEMA HEBRAICO




"Quando estamos nos degraus mais baixos 
da escada do pesar , nós choramos .
Quando chegamos à metade dela ,nós emudecemos .
Mas quando alcançamos o topo da escada 
do pesar ,nós convertemos a tristeza em canto ."


Poema hebraico


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MONÓLOGO



Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.


Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!


É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,


qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.



Dante Milano,
In melhores Poemas


domingo, 23 de novembro de 2014

AS NUVENS





As nuvens
não têm preocupação estética.
Sou eu
que as organizo
para meu regozijo esperto.

Elas simplesmente se desfazem
e nem disto sabem
mas eu as estudo, eu as apuro
como Turner
e alguns poetas
que organizaram  o entardecer.

A natureza
não tem preocupações  morais.
A natureza não mata
nem odeia.

Ou melhor:

mata e ama
de igual maneira
e todo movimento
é  desejo
de viver.

A morte
é apenas uma forma estranha
da vida

se refazer.

Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha 



sábado, 22 de novembro de 2014

CEM PESSOAS





Em cada cem pessoas

Aquelas que sempre sabem mais:
cinquenta e duas.

Inseguras de cada passo:
quase todo o resto.

Prontas a ajudar,
desde que não demore muito:
quarenta e nove.

Sempre boas,
porque não podem ser de outra maneira:
quatro — bem, talvez cinco.

Capazes de admirar sem invejar:
dezoito.

Levadas ao erro
pela juventude (que passa):
sessenta, mais ou menos.

Aquelas com quem é bom não se meter:
quarenta e quatro.

Vivem com medo constante
de alguma coisa ou alguém:
setenta e sete.

Capazes de felicidade:
vinte e alguns, no máximo.

Inofensivos sozinhos,
selvagens em multidões:
mais da metade, por certo.

Cruéis,
quando forçados pelas circunstâncias:
é melhor não saber
nem aproximadamente.

Peritos em prever:
não muitos mais
que os peritos em adivinhar.

Tiram da vida nada além de coisas:
trinta
(mas eu gostaria de estar errada).

Dobradas de dor,
sem uma lanterna na escuridão:
oitenta e três,
mais cedo ou mais tarde.

Aqueles que são justos:
uns trinta e cinco.

Mas se for difícil de entender:
três.

Dignos de simpatia:
noventa e nove.

Mortais:
cem em cem –
um número que não tem variado.


Wislawa Szimborska
in Poemas, tradução de Regina Przybycien


AGRADECIMENTO




Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar

Não espero por eles
andando da janela à porta

Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo
o que o amor nunca perdoaria

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

 As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

 É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
comum horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

 “Não lhes devo nada” –
diria o amor
sobre essa questão aberta.


Wislawa Szymborska 
In: Poemas, ed. Companhia das Letras.



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

QUISERA...



Quisera o canto jubiloso
que corresse por dentro de minhas palavras.
Como  um rio destampado corresse para os
campos.
 
Manoel de Barros
In Menino do mato




segunda-feira, 17 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados
num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a
terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para
que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas
tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam
o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os
pássaros - Em vão... porque até na cidade, a primavera
é primavera.
 Leon Tolstói,
em "Ressurreição" 





domingo, 16 de novembro de 2014

OS MEUS LIVROS




Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.


Jorge Luis Borges
in "A Rosa Profunda"


A MULHER DE LOT



Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de idéia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus _ simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


WISLAWA SZYMBORSKA _
tradução: Regina Przybycien


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

JARDIM



 
"Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.
 
Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.
 
Um murmúrio de omissões, um cântico de ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz."

 
António Ramos Rosa,
in "Volante verde"

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

USO A PALAVRA PARA COMPOR MEUS SILÊNCIOS



Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios

Manoel de Barros
in Memórias Inventadas

19/12/1916 - 13/11/2014


domingo, 9 de novembro de 2014

FUTURO




É preciso que exista, enfim, uma hora clara,
depois que os corpos se resignam sobre as pedras
como máscaras metidas no chão.

Por entre as raízes, talvez se veja, de olhos fechados,
como nunca se pode ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminação.

Perguntareis: “Mas era aquilo, o teu silêncio?”
Perguntareis: “Mas era assim, teu coração?”

Ah, seremos apenas imagens inúteis, deitadas no barro,
do mesmo modo solitárias, silenciosas,
com a cabeça encostada à sua própria recordação.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto





 

CITAÇÃO


(foto by Sebastião Salgado)

 
“A humanidade andou buscando, durante muito tempo,
uma linguagem universal. Falou-se do latim, no início;
depois, do inglês; houve um momento em que se tentou 
criar uma língua – o esperanto –, mas a linguagem
universal foi criada. É a linguagem da imagem.
E a fotografia é seu vetor principal.
Quando se escreve nesta linguagem ... 
Todo mundo compreende.”

- Sebastião Salgado

 



CITAÇÃO


(foto by Sebastião Salgado)

"Estas Américas Latinas tão misteriosas
e sofridas, tão heroicas e nobres."

- Sebastião Salgado


ABRAÇA-ME



Abraça-me.

Sem motivo, sem explicação.
Abraça-me por um abraço.
Por desejo de sentires o meu coração.
Por vontade de beijares a minha alma.
Abraça-me.
Apenas…

Ana Alvarenga





quarta-feira, 5 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



"É possível desafiar os conceitos que imperam,
desatar fios que nos enredam, limpar o pó desse
uniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas
decoradas, a tirania do que temos de ser ou fazer.
Pronunciar a nossa própria alforria: vai ser livre,
vai ser você mesmo, vai tentar ser feliz , seja lá
o que isso for."

Lya Luft,
in O tempo é um rio que corre


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

URGÊNCIA DE ABRAÇOS



Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que abriguem olhares cansados
abraços que respirem profundamente as dores alheias

abraços que bebam lágrimas e palavras (in)contidas

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que transportem esperança e serenidade
abraços que levem sorrisos e sílabas quentes
abraços que guardem em si todos os futuros do amanhã
abraços que curem e que amem e que respeitem

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços
abraços que libertem e ousem outros abraços
abraços que respirem e deixem poemas nos outros abraços
abraços que congreguem todos os afectos
abraços que silenciem tristezas e deixem abraços abertos
abraços que se fechem nos outros abraços
abraços que se confundam e se tatuem e se fundam noutros abraços

Há cada vez mais uma enorme urgência de abraços !


ANTÓNIO BARROSO CRUZ 
(a publicar)







domingo, 2 de novembro de 2014

ELEGIA




Destes obscuros canteiros da alma,
destes bosques do coração,
desta melancolia da morte
sobem as vozes, com ramos de lágrimas.


Assim partis,
sem terras, ares, mares:
só pela invisibilidade,
sem saberdes sequer que estais partindo.


Não nos podemos mais saudar nem despedir,
ó amigos,
nem repartir o pão da nossa mesa
e a luz dos nossos sonhos.


Sois agora como estátuas 
em solidões silenciosas,
entre solenes paredes de saudade,
em sítios suspensos do pensamento.


Mais longe que aquela nuvem.
Mais longe que qualquer céu.
Podemos pensar mais longe.
E quereríamos que um dia voltásseis,


para sermos outra vez amigos.
(Ramos de lágrimas, as vozes.) 



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)







sexta-feira, 31 de outubro de 2014

EXCERTO




(...) “Minha infância de menina sozinha
deu-me duas coisas que parecem negativas,
e foram sempre positivas para mim: 
silêncio e solidão. Essa foi sempre a área
de minha vida. Área mágica, onde os
caleidoscópios inventaram fabulosos
mundos geométricos, onde os relógios 
revelaram o segredo do seu mecanismo,
e as bonecas o jogo do seu olhar.(...)

Cecília Meireles




DA SOLIDÃO




Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só. 

No entanto, a multidão tem sua musica,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes! 

Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua musica,
seu ritmo, seu calor. 

Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silencio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as arvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar, 
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós: 

E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava – Solidão – e logo seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava... 

Solidão – dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
essas escadas, essas plataformas, essas pedras...
e deitava-me sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim – aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto – deitava-me nos ares,
onde quer que estivesse deitada. 

Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões. 

Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas és tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


ARTE DE SER FELIZ


[...]
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma 
cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia
um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem,
de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde,
e, em silencio,ia atirando com a mão umas gotas de 
água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma 
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não 
morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caiam de seus dedos magros,
e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças
que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no 
espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Veiga. Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa. Tudo esta certo, no seu lugar,
cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas,quando falo dessas pequenas felicidades certas que 
estão diante de cada janela,uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem diante de minhas 
janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender
a olhar, para poder vê-las assim.

[Excerto]

Cecília Meireles,
de ''Escolha seu sonho''



IMPROVISO



Minha canção não foi bela:
Minha canção foi só triste.
Mas eu sei que não existe
Mais canção igual àquela.

Não há gemido nem grito
Pungentes como a serena
Expressão da doce pena.

E por um tempo infinito
Repetiria o meu canto
- saudosa de sofrer tanto.


Cecília Meireles
In Retrato Natural


TODAS AS AVES DO MUNDO DO AMOR CANTAVAM...




Todas as aves do mundo de amor cantavam...
e os grandes horizontes se estendiam multicores
e os dias da vida eram tão raros ainda
que se podiam enumerar, só por suas lembranças.

“Todas as aves do mundo de amor cantavam...”
mas grandes mares se abriram para passagens belas como ritos,
e os dias se tornaram tão numerosos e densos e duros
como essas pedras das fortalezas em montanhas antigas.

E agora são na verdade os dias inumeráveis
e cada um com sua angustia, e todos eles se entrechocam,
e a noite vem mais cedo há tempestades entre as nuvens.

E eu queria que todas as aves do mundo de amor cantassem,
mas um vasto silencio, uma vigília de morte
estende céus frios, céus escuros sobre amargos corações.

1960

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


CITAÇÃO



"Uma das coisas que marcam nossas vidas de 
forma inesquecível são as casas onde 
moramos. O ambiente familiar vivido,
os problemas enfrentados pela vida afora.
Nelas, nas velhas paredes que do mundo
nos separavam, a família cresceu e,
entre alegrias e tristezas, 
o tempo passou, implacável."

Oscar Niemeyer,
in As curvas do tempo - memórias

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

DUALISMO




Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora." 


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MEMÓRIA ATÁVICA



Em algum lugar
deste infinito mistério
- que é meu ser -,
a emoção primitiva
brilha
e reflete
a memória de todas as eras.


Adélia Maria Woellner






domingo, 19 de outubro de 2014

RECONSTRUÇÃO



Um silencio
triste
na sombra
da noite.
O quarto
vazio.
Pessoas
distantes.
O sono
não vem.
À luz 
mortiça
construo
meu dia
onde
não há
o bulício
das ruas,
o palmilhar
das pessoas,
o riso
das crianças,
o fru-fru
das saias,
mas,
apenas,
o silencio
na sombra
da vida!


Delores Pires
In: A Estrela e a Busca