segunda-feira, 30 de junho de 2014

APATIA



Olhando só para o chão,
percebeu, apenas,
o movimento
das sombras sem cor.

Sem coragem
de olhar para o céu,
deixou de ver
o vôo azul
das borboletas.

Adélia Maria Woellner



A MEMÓRIA




A tua memória passa através dos factos como de 
uma fila de vidraças,ou de estações, ou de folhas
de álbum. Às vezes, porém, paras numa,e é como 
se toda a vida se fixasse aí. E giras em torno,
numa obsessão.Somente às vezes também, em vez 
de te fixares realmente, quando menos o julgas
estás parado noutra folha, noutra janela,
noutra paisagem. 


Vergílio Ferreira, 
in 'Estrela Polar'

VIVE O INSTANTE QUE PASSA...




"Vive o instante que passa. Vive-o intensamente
até à última gota de sangue. É um instante banal,
nada há nele que o distinga de mil outros instantes
vividos, e no entanto ele é o único por ser 
irrepetível e isso o distingue de qualquer outro.
Porque nunca mais será o mesmo nem tu que o estás
vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e
que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti.
Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à 
profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes 
longínquas de crianças, o ruído de um motor que 
passa na estrada, o silêncio que isso envolve e 
que fica. E pensa-te a ti que disso percebes, 
sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí.
E que nada se perca infinitesimalmente no mundo
que vives e na pessoa que és. Assim o dom 
estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez 
maior de o não teres cumprido integralmente, de o 
teres desperdiçado numa vida que terá fim."

Vergílio Ferreira 
in "Conta-Corrente IV"

XXIII




Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe só num olhar...

- Mario Quintana, 
in: A Rua dos Cataventos, 1940.


domingo, 29 de junho de 2014

O MELHOR GOL



[...]
Passados os grandes e bons festejos,
que por nossa ação esse Brasil vá se
tornando uma imensa comunidade mais justa,
mais segura, mais rica, mais positiva.
E já que a vida é uma permanente Copa,
esse será o nosso melhor gol"

Lya Luft,
in Revista Veja,
2-7-2014




sábado, 28 de junho de 2014

UM SOPRO


 
 
Como chegar ao coração
dos mortos
esse duro coração de hera
perdido entre as águas da memória
como um barco de outros tempos?
 
Um sopro ainda vive
como uma flauta longínqua.
 
Roseana Murray, 
in Pássaros do Absurdo
 
 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

A BELEZA AINDA ME EMOCIONA...




A beleza ainda me emociona muito.
Não só a beleza física, mas a beleza natural.
Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho
uma visão da natureza muito mais rica do
que eu tinha quando era jovem.

Eu reparava mais em certas formas de beleza
Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório
surpreendente de coisas magníficas e coisas belas.

Contemplar o voo do pássaro, contemplar uma
pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela...

Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho
que voou para cima de mim, à procura de comida ou
de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a
integração dos seres vivos no meio natural, para mim,
é uma coisa que considero sublime.

Carlos Drummond de Andrade,
(trecho da última entrevista publicada no suplemento
“ Idéias” Jornal do Brasil, de 22 agosto 1987) 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

GUARDAR


 
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
 
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
 
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
 
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
 
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
 
 
  António Cícero, 
in Guardar-Poemas Escolhidos

quarta-feira, 25 de junho de 2014

CITAÇÃO



"Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar,
outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo
estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, 
fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas,
não as convocámos, mas elas aí estão."

José Saramago,
in "As Pequenas Memórias"







O CISNE



Este cansaço de passar como que atado
a coisas que ainda não foram feitas,
parece o caminho incriado do cisne.
E o morrer, esse desapegar-se
do fundo em que diariamente estamos,
seu tímido abandonar-se às águas
que mansamente o acolhem e por serem
felizes e já passadas, onda a onda,
sob seu corpo se retraem;
então, firme e tranqüilo,
com realeza e crescente segurança,
abandona-se o cisne ao deslizar.

Rainer Maria Rilke
Tradução de Dora Ferreira da Silva

terça-feira, 24 de junho de 2014

A CASA DA INFÂNCIA



"A casa da infância é como um rosto de mãe: 
contemplamo-lo como se já existisse antes 
de haver o Tempo."

Mia Couto 
in O outro pé da sereia.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

VIVER



(cartão by Regina Helena)

Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida 
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


Carlos Drummond de Andrade,
in 'As Impurezas do Branco"

sábado, 14 de junho de 2014

HAIKAI



a  folhas tantas
o outono
nem sabe a quantas

Paulo Leminski,
in Toda Poesia




EM QUALQUER FASE DA VIDA...


"Em qualquer fase da vida surgem enseadas
tranquilas e águas que parecem voz de mãe.
Como na natureza: inesperadamente, no meio
do banal cotidiano,
a alegria inexplicada,
as coisas que dão certo.
O novo emprego,
o amor que floresce,
o filho que sorri,
a saúde recuperada,
as contas liquidadas,
a vida possível.
Cicatrizes de velhas esperanças...

O tempo traz soluções que a gente nem
imaginava..."

Lya Luft,
in O tempo é um rio que corre



sexta-feira, 13 de junho de 2014

ANTES QUE A TARDE AMANHEÇA...



Antes que a tarde amanheça
e a noite vire dia
põe poesia no café
e café na poesia.

Paulo Leminski,
in Toda Poesia 


quinta-feira, 12 de junho de 2014

BILHETE



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…

Mario Quintana 
in Esconderijos do Tempo, 


quarta-feira, 11 de junho de 2014

FORMATAÇÃO DA AMIGA REGINA HELENA


INSURREIÇÃO



não submeto meus silêncios aos 
gritos de quem perdeu o hábito do futuro 
sou como uma gota qualquer de plenitude 
em um universo que escuta e permanece mudo. 

Lau Siqueira, 
in Texto Sentido. 


segunda-feira, 9 de junho de 2014

SER E TEMPO




Ser é durar... Somos, então,
nesses momentos em que a vida
excede a própria duração?
Nesses momentos quando o amor
(fruto a multiplicar-se em gomos,
em cada gomo outro sabor)
é uma surpresa repetida
— que somos nós? Acaso somos?

Geir Campos 
In ‘Canto Claro e Poemas Anteriores.(1957)

EPÍLOGO



Nunca estive antes tão velho. 
Giram relógios na alma
e dessangram-se ampulhetas
- como a esperança e a calma. 

Cai a tarde, indiferente, 
sobre os muros e o jardim. 
Nunca me senti tão vasto
na história contada em mim. 

Ruy Espinheira Filho

sexta-feira, 6 de junho de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




[...]
Ora somos reis, ora nos sentimos réus.
A tribo nos acolhe, nos conforta, quebra
um pouco a solidão, mas também pode nos
descaracterizar, nos engolir. 
A gente nunca sabe direito o que fazer, 
então canta,
então chora, 
então ama,
então se desespera,
então ri
com o mesmo encantador jeito
infantil de outro dia.
[...]

Lya Luft,
in O tempo é um rio que corre.





CITAÇÃO


“Adoro as coisas simples.
Elas são o último refúgio
de um espírito complexo.”

Oscar Wilde 



 



quinta-feira, 5 de junho de 2014

NADA




Sou sombra que passa na vida chorando.
Sou sombra que passa na vida cantando,
Chorando e cantando, na vida tão triste.
Sou nuvem de pó
Que em vão corre o mundo
Na aza do vento;
E encontro-me tão só
No abismo sem fundo
Do meu pensamento...
Sou agua tão leve
Que nasce da fonte
E corre para o mar;
Sou floco de neve
Que cai sobre o monte,
Lembrando o luar;
Sou ave pairando
No mais alto cume
Da montanha, além;
Sou pedra que rola,
Sou onda quebrando,
Sou como um perfume
Que no ar se evola;
Sou nada também.


Anrique Paço d'Arcos
in "Divina tristeza"

segunda-feira, 2 de junho de 2014

TEMA SEM VARIAÇÃO



Sequer apago as passadas
deste meu vagar sozinho,
sozinho em tantas estradas:
triturador de caminhos,
move-me um remoinho
de frescas águas passadas.

Geir Campos 
In ‘Canto Claro e Poemas Anteriores.(1957)