terça-feira, 30 de setembro de 2014

OS FILHOS DA ÉPOCA




Somos os filhos da época,
e a época é política.

Todas as coisas – minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.

Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.

O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra – político.

Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.

Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.

Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.

Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.

Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

WISLAWA SZYMBORSKA
Tradução: Ana Cristina Cesar
em colaboração com a polonesa Grazyna Drabik.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

DANÇA DA CHUVA



senhorita chuva
me concede a honra
desta contradança
e vamos sair
por esses campos
ao som desta chuva
que cai sobre o teclado.

Paulo Leminski
in Caprichos & Relaxos


domingo, 28 de setembro de 2014

CITAÇÃO




"Que a gente não permita que as batalhas
da vida nos roubem a delicadeza do olhar."

Sirlei Passolongo.

sábado, 27 de setembro de 2014

LINGUA PORTUGUESA




Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

POESIA PURA


Foto by Claudio Pereira

Um lampião de esquina
Só pode ser comparado a um lampião de esquina,
De tal maneira ele é ele mesmo
Na sua ardente solidão!

Mario Quintana ,
de Apontamentos de História Sobrenatura


LEITURA NATURAL



Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.


Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.


Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem e só depois
o verde texto que me exprime.


Affonso Romano de Sant'Anna,
in Epitáfio para o Século XX e Outros Poemas















sexta-feira, 26 de setembro de 2014

CONFIDENCIAL




Não me perguntes, porque nada sei
Da vida,
Nem do amor,
Nem de Deus,
Nem da morte.
Vivo,
Amo,
Acredito sem crer,
E morro, antecipadamente
Ressuscitando.
O resto são palavras
Que decorei
De tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
Aprende a adivinhar
O que de mim não possas entender.

Miguel Torga 
In ‘Obra Completa’

UM POEMA



Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz... 

Miguel Torga,
de Diário XIII



FOI NESSA IDADE QUE A POESIA ME VEIO BUSCAR...



Foi nessa idade que a poesia me veio buscar
Não sei de onde veio
Do inverno, de um rio
Não sei como nem quando
Não ,não eram vozes
Não eram palavras
Nem silêncio
Mas ,da rua fui convocado
Dos galhos da noite
Abruptamente entre outros
Entre fogos violentos
Voltando sozinho
Lá estava eu sem rosto
E fui tocado

Pablo Neruda








quarta-feira, 24 de setembro de 2014

CITAÇÃO


Foto by Leo Flores

« (...) A história da cidade é também a história
 da arquitectura; mas a história da arquitectura é,
 quanto muito, um ponto a partir do qual a 
 cidade pode ser vista. (...) »

Aldo Rossi 
in A Arquitectura da Cidade

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A FUMAÇA



A pequena casa entre as árvores no lago. 
Do telhado sobe fumaça. 
Sem ela
Quão tristes seriam
Casa, árvores e lago. 

Bertolt Brecht(1898-1956) 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

PRIMAVERA I




Verei a primavera se encaminhar com o seu chapéu de 
palha e o seu róseo vestido
Pelas ruas amigas, perto da casa em que mora.
Verei o teu rosto se tingir com a poeira dos ocasos
E tuas mãos morenas se balançarem tênues sob a água das cascatas
Longe das ingratidões, das lutas, dos equívocos de todo dia.
Os cisnes se confiarão como nos tempos calmos.
As violetas distantes sorrirão com as terras úmidas e grávidas.
Os pássaros, os ninhos vão cantar!
Verei chegar o teu vestido e te confundirei com a Primavera.
Seguirei com a Primavera pelas ruas.
Os circos vão pousar como pássaros enormes.
Primavera! Primavera!
O amor vai renascer nos campos
E as amadas dormirão cobertas pelos azuis sem fim.

Augusto F. Schmidt,
in Um Século de Poesia

domingo, 21 de setembro de 2014

UMA ÁRVORE




Antes dos fundamentos de Minas,
eu já era, com as bicas e as fontes.

Mãe dileta das relvas, das grotas, 
cobria em tapete ileso
a vasta inconsciência da terra
em suas planuras e montes.

Seguia, alegre, as curvas, as margens 
de corredeiras e rios, acatava 
em silêncio o clamor dos trovões -
minha seiva corria equânime
sob o esplendor dos elementos
ou as gasturas invernais.

Preparei longa e arduamente a casa, 
alimento e berço, a morada,
para as futuras criações em asas.


Acima de mim, para além do sol,
era apenas o pêndulo da noite
ritmando a dança dos astros –
o espelho – a incógnita dos primórdios.


Fernando Campanella 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

MEUS OITO ANOS





Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !

Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !

Como são belos os dias
Do despontar da existência !
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;

O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor !

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar !

O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar !

Oh ! dias de minha infância !
Oh ! meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !

Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã !

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberta ao peito,
– Pés descalços, braços nus -

Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis !

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;

Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar !

Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !

– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !


Casimiro de Abreu
in “As Primaveras”,
 publicado em 1859.
 
 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

SONETO XIV



As casas, as pessoas e os poemas
Devem ser habitáveis, devem ter
Livre circulação de luz e temas,
E estranhas aventuras de viver.
Que as estruturas falem de aconchego
Num pulsar de projetos e paixão,
E entre guerras e campos de sossego,
O pervagar por sorte ou vocação.
Que more olhar silente nos terraços
Dos frágeis edifícios de existir,
E mesmo soterrada sob espaços
Surja do caos a ordem de florir.
Em cordas de água sobe o sol dos banjos,
Haja a plumária dos momentos anjos!


Paulo Bomfim
in Súdito da Noite


CITAÇÃO




Ela acreditava em anjo e,
porque acreditava,
eles existiam.

*Clarice Lispector,
in A Hora da Estrela.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

MÍMICA POÉTICA



Dizer não tudo, que isso não se faz,
nem nada, o que seria impossível;
dizer apenas tudo que é demais
pra se calar e menos que indizível.

Dizer apenas o que não dizer
seria uma espécie de mentira:
falar, não por falar, mas para viver,
falar (ou escrever) como quem respira.

Dizer apenas o que não repita
a textura do mundo esvaziado:
escrever, sim, mas escrever com tinta;
pintar, mas não como aquele que pinta
de branco o muro que já foi caiado;
escrever, sim, mas como quem grafita."

Paulo Henriques Britto,

in Mínima lírica, 1989


domingo, 14 de setembro de 2014

CITAÇÃO



Cada um só pode ser ele mesmo, 
inteiramente, apenas pelo tempo
em que estiver sozinho. 
Quem, portanto, não ama a solidão, 
também não ama a liberdade: 
apenas quando se está só é que se está livre. 

Arthur Schopenhauer
 (1788–1860)

sábado, 13 de setembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



[...]
Risos podem se tonar escassos na hora das
trevas, e ela sempre chega: morte, doença,
abandono, separação, fantasmas nossos, sem
rosto nem nome. Pode ser aos dez, aos 
cinquenta, aos oitenta. Quando abrem nosso
peito e nos arrancam o coração, e a alma
envelhece décadas em um instante. Viramos
memória dolorida do que um dia fomos...

Lya Luft,
in o tempo é um rio que corre



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

AQUILO QUE NÃO SOMOS



Ninguém tem culpa
Daquilo que não fomos!
Não houve erros,
Nem cálculos falhados
Sobre a estepe de papel.
Apenas,
Não somos os calculistas
Porém os calculados,
Não somos os desenhistas
Mas os desenhados,
E muito menos escrevemos versos
E sim somos escritos.
Ninguém é culpado de nada
Neste estranhar constante.

Ao longe, uma chuva fina
Molha aquilo que não fomos.


Paulo Bomfim

CITAÇÃO



"É o bom leitor que faz o bom livro; em cada livro,
ele encontra trechos que parecem confidências ou
apartes ocultos para qualquer outro e evidentemente
destinados ao seu ouvido; o proveito dos livros
depende da sensibilidade do leitor; a ideia ou
paixão mais profunda dorme como numa mina enquanto
não é descoberta por uma mente e um coração afins"

(Ralph Waldo Emerson,
in 'Sociedade e Solidão')

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

ARQUITETURA FUNCIONAL



Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas.
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer
essas assombrações vulgares 
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma...tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não tem porões nem sótãos, 
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hospede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa.
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas...)
E as casa novas não tem ao menos aqueles longos,
intermináveis corredores
Que a lua vinha às vezes assombrar!

Mario Quintana
De: Apontamentos de História Sobrenatural








SONETO VII



Deixemo-nos viver por vocação,
Densos de sonhos e tintos de inocência,
Por bandeiras, jazidas de intuição,
E passos fabulando na existência.
Contraditórios sim, pois vários somos,
Faces que se desvendam e se procuram,
Assim vamos seguindo entre os assomos
E evanescentes luas que ainda auguram.
Deixemo-nos viver em rebeldia,
Falcão de puro vôo em nossos ombros,
Cresce brasão inquieto em penedia,
Por timbre, cavalgada dos assombros.
E na certeza que nos torna vários,
Haja glória de sermos tão precários!

Paulo Bomfim
in Súdito da Noite




SONETO XIII




Ruas morrendo em mim subitamente.
Calçadas vêm descendo o meu destino,
Com casas onde sinto que termino
Na chuva dos beirais de antigamente.

Passos pisam de leve a minha mente.
Alma das tardes longas, voz de sino
Entre lajes de sol onde germino
Dos gritos silenciosos da semente.

Ruas morrendo em mim, cheias de infância.
Árvores mortas com raízes na alma,
Deitando folhas verdes na distância ...

E, à noite, este infinito que ainda medra:
A voz dos passos numa esquina calma,
A serenata nos violões de pedra.

Paulo Bomfim
in Sonetos – l.959 –

domingo, 7 de setembro de 2014

AZUL DE TI



Pensar em ti é azul, como ir vagando
por um bosque dourado ao meio dia:
nascem jardins na fala minha
e com minhas nuvens, por teus sonhos, ando.

Nos une e nos separa um ar brando,
uma distância de melancolia;
eu alço os braços de minha poesia,
azul de ti, dorido e esperando.

É como um horizonte de violinos
ou um tépido sofrimento de jasmins
pensar em ti, de azul temperamento.

O mundo torna-se cristalino,
e te vejo, entre lâmpadas de trino,
azul domingo de meu pensamento.

Eduardo Carranza
In Antologia Poética

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O HOMEM QUE VINHA AO ENTARDECER



Falava com devagar, ajeitando as
palavras. Falava com cuidado,
houvesse lume entre as palavras.

Chegava ao entardecer, os sapatos
cheios de terra vermelha e do perfume
dos matos.

Cumpria rigorosamente os rituais.

Batia primeiro as palmas (junto
ao peito)
Depois falava.
Dos bois, das lavras, das coisas
simples do seu dia-a-dia. E todavia
era tal o mistério das tardes quando
assim falava
que doía.


José Eduardo Agualusa
(in Palavra de Poeta - Antologia)


...E OUTRAS FACES




Sou como Sou!

Os outros,
são como são.

E nunca como eu gostaria que fossem.



Vicente Ferreira da Silva
in Espelhos e Outras Faces

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A COR DA LUA NOVA




Com crisântemos entre as mãos,
manuseio ideias fixas
e pinto, de vermelho, todos os segredos
que guardo pouco à vontade.
Depois, ao comprido das horas,
escolho um lugar estratégico para esperar a alegria
e dou, ao coração, nomes contraditórios.
A passagem do tempo, traça em meus pés
um futuro peregrino.
Nenhum prodígio me está destinado.
Só a brisa, entrando pelo avesso dos sonhos,
infatigável e lenta, me deixa no olhar
a cor da lua nova.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002



terça-feira, 2 de setembro de 2014

CITAÇÃO


A literatura, porque se dirige ao coração,
à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, 
toma o homem por todos os lados; toca por isso em
todos os interesses, todas as ideias, todos os
sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade,
na família como na praça pública; dispõe os
espíritos; determina certas correntes de opinião;
combate ou abre caminho a certas tendências;
e não é muito dizer que é ela quem prepara o 
berço aonde se há-de receber esse misterioso
filho do tempo - o futuro. "

Antero de Quental, 
in Prosas da Época de Coimbra

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

VENTO



Passaram os ventos de agosto, levando tudo.
As árvores humilhadas bateram, bateram com os ramos no chão.
Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas;
os ninhos que os homens não viram nos galhos,
e uma esperança que ninguém viu, num coração.

Passaram os ventos de agosto, terríveis, por dentro da noite.
Em todos os sonos pisou, quebrando-os, o seu tropel.
Mas, sobre a paisagem cansada da aventura excessiva -
sem forma e sem eco,
o sol encontrou as crianças procurando outra vez o vento
para soltarem papagaios de papel.

Cecilia Meireles
In Viagem