sexta-feira, 31 de outubro de 2014

EXCERTO




(...) “Minha infância de menina sozinha
deu-me duas coisas que parecem negativas,
e foram sempre positivas para mim: 
silêncio e solidão. Essa foi sempre a área
de minha vida. Área mágica, onde os
caleidoscópios inventaram fabulosos
mundos geométricos, onde os relógios 
revelaram o segredo do seu mecanismo,
e as bonecas o jogo do seu olhar.(...)

Cecília Meireles




DA SOLIDÃO




Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só. 

No entanto, a multidão tem sua musica,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes! 

Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua musica,
seu ritmo, seu calor. 

Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silencio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as arvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar, 
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós: 

E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava – Solidão – e logo seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava... 

Solidão – dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
essas escadas, essas plataformas, essas pedras...
e deitava-me sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim – aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto – deitava-me nos ares,
onde quer que estivesse deitada. 

Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões. 

Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas és tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


ARTE DE SER FELIZ


[...]
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma 
cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia
um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem,
de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde,
e, em silencio,ia atirando com a mão umas gotas de 
água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma 
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não 
morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caiam de seus dedos magros,
e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças
que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no 
espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Veiga. Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa. Tudo esta certo, no seu lugar,
cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas,quando falo dessas pequenas felicidades certas que 
estão diante de cada janela,uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem diante de minhas 
janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender
a olhar, para poder vê-las assim.

[Excerto]

Cecília Meireles,
de ''Escolha seu sonho''



IMPROVISO



Minha canção não foi bela:
Minha canção foi só triste.
Mas eu sei que não existe
Mais canção igual àquela.

Não há gemido nem grito
Pungentes como a serena
Expressão da doce pena.

E por um tempo infinito
Repetiria o meu canto
- saudosa de sofrer tanto.


Cecília Meireles
In Retrato Natural


TODAS AS AVES DO MUNDO DO AMOR CANTAVAM...




Todas as aves do mundo de amor cantavam...
e os grandes horizontes se estendiam multicores
e os dias da vida eram tão raros ainda
que se podiam enumerar, só por suas lembranças.

“Todas as aves do mundo de amor cantavam...”
mas grandes mares se abriram para passagens belas como ritos,
e os dias se tornaram tão numerosos e densos e duros
como essas pedras das fortalezas em montanhas antigas.

E agora são na verdade os dias inumeráveis
e cada um com sua angustia, e todos eles se entrechocam,
e a noite vem mais cedo há tempestades entre as nuvens.

E eu queria que todas as aves do mundo de amor cantassem,
mas um vasto silencio, uma vigília de morte
estende céus frios, céus escuros sobre amargos corações.

1960

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


CITAÇÃO



"Uma das coisas que marcam nossas vidas de 
forma inesquecível são as casas onde 
moramos. O ambiente familiar vivido,
os problemas enfrentados pela vida afora.
Nelas, nas velhas paredes que do mundo
nos separavam, a família cresceu e,
entre alegrias e tristezas, 
o tempo passou, implacável."

Oscar Niemeyer,
in As curvas do tempo - memórias

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

DUALISMO




Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora." 


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MEMÓRIA ATÁVICA



Em algum lugar
deste infinito mistério
- que é meu ser -,
a emoção primitiva
brilha
e reflete
a memória de todas as eras.


Adélia Maria Woellner






domingo, 19 de outubro de 2014

RECONSTRUÇÃO



Um silencio
triste
na sombra
da noite.
O quarto
vazio.
Pessoas
distantes.
O sono
não vem.
À luz 
mortiça
construo
meu dia
onde
não há
o bulício
das ruas,
o palmilhar
das pessoas,
o riso
das crianças,
o fru-fru
das saias,
mas,
apenas,
o silencio
na sombra
da vida!


Delores Pires
In: A Estrela e a Busca

A INFÂNCIA


“ A infância não é um tempo, não é uma idade,
uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é
demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos 
surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo
se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio 
sentimento do Tempo.”

Mia Couto,
in ”E se Obama fosse africano?"


POESIA




" A poesia é algo que anda pelas ruas. Que se move,
que passa ao nosso lado. Todas as coisas têm o seu
mistério e a poesia é o mistério que contém todas 
as coisas. Se passamos junto de um homem, se olhamos
uma mulher, se adivinhamos a marcha oblíqua de um 
cão, em cada um desses objetos humanos está a poesia."

Federico Garcia Lorca,
in Pequeno Poema Infinito





MUSICA PARA UM HINO



É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser LIVRE, LIVRE, LIVRE.


Manuel Alegre
in O CANTO E AS ARMAS





segunda-feira, 13 de outubro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO



(...) amo os grandes rios, pois são profundos
como a alma do homem.Na superfície são muito
vivazes e claros, mas nas profundezas são 
tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos
homens.Amo ainda mais uma coisa de nossos 
grandes rios: sua eternidade.
Sim, rio é uma palavra mágica para 
conjugar eternidade.

João Guimarães Rosa,
in A Terceira Margem do Rio

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA



Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela,vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre as sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com o limite do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro.


Adélia Prado
In Oráculo de Maio


“ACEITAÇÃO”



Cansei de usar
força
e recursos,
na tentativa inútil
de alterar
as coisas,
fora de seu tempo.
Manipulei minha ansiedade
e fui buscar
consolo
no regaço do tempo.


Adélia Maria Woellner

ALONGO-ME



O rio nasce 
toda a vida. 
Dá-se 
ao mar a alma vivida. 
A água amadurecida 
a face 
ida. 
O rio sempre renasce. 
A morte é vida. 

JOÃO GUIMARÃES ROSA 
In Magma, 1936



quinta-feira, 9 de outubro de 2014

ENTENDIMENTO PERFEITO




Sentaram-se no banco e se calaram,
tentando entender o silêncio.
As palavras tinham um sentido além
delas mesmas. O silêncio seria,
sempre, o único meio de
entendimento perfeito.

Fernando Sabino
In “0 Encontro Marcado"

 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

MOMENTO




O mundo é frágil
E cheio de frêmitos
Como um aquário...

Sobre ele desenho
Este poema: imagem
De imagens!


Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural

domingo, 5 de outubro de 2014

OLHAR



Tinha o olhar distante,
cheio de saudade.
Um olhar perdido
numa outra idade.

Helena Kolody,
in Infinita Sinfonia



OLHOS




Na face menina,
os olhos antigos
como a dor do mundo.

Helena Kolody,
in Infinita Sinfonia



sábado, 4 de outubro de 2014

CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE




Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana ,
in Preparativos de Viagem


I. DA OBSERVAÇÃO




Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Mario Quintana,
in Espelho Mágico

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO




Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha Poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.

Mario Quintana,
in Nova Antologia Poética


O SILÊNCIO




Há um grande silêncio que está à escuta...

E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta... 
e cala.

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


ORAÇÃO



Dá-me a alegria
Do poema de cada dia.
E que ao longo do caminho
Às almas eu distribua
Minha porção de poesia
Sem que ela diminua...
Poesia tanta e tão minha
Que por uma eucaristia
Poesia eu fazê-la sua
"Eis minha carne e meu sangue!"
A minha carne e meu sangue
Em toda a ardente impureza
Deste humano coração...
Mas, ó Coração Divino,
Deixai-me dar de meu vinho,
Deixai-me dar de meu pão!
Que mal faz uma canção?
Basta que tenha beleza...


Mario Quintana
In A Cor do invisível

QUEM AMA INVENTA



Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

Mario Quintana,
in A cor do invisível

COISAS




Uma rãzinha verde no gris da manhã...
Um sorriso na face de um ceguinho...
Uma nota aguda como uma pergunta de
criança...
Um cheiro agradecido de terra molhada...
Um olhar que nos enche subitamente de azul...

Mario Quintana,
in Caderno H




O JOGO DA ESPERANÇA




Quando morremos acontece com as nossas
esperanças o mesmo que com esse brinquedo
de estátuas, em que todas se imobilizam
de súbito, cada qual na posição do momento.
Mas as esperanças têm menos paciência.
E vão imediatamente continuar, no coração
de outros, o seu velho sonho interrompido.

Mario Quintana,
in Da Preguiça como Método de Trabalho






INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA




A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...

Mário Quintana
in Nova Antologia Poética

LXXVI



 Da discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo de teu amigo 
Possui amigos também...

Mario Quintana
In: Espelho Mágico


BILHETE



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…


Mario Quintana 
in Esconderijos do Tempo,

COEXISTÊNCIA PACÍFICA



Amai-vos uns aos outros é muito forte para nós:
o mais que podemos fazer, dentro da imperfeição
humana, é suportarmo-nos uns aos outros.

- Mario Quintana, 
in: Caderno H, 1973






A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR



A gente sempre deve sair à rua como quem foge 
de casa,
como se estivessem abertos diante de nós todos
os caminhos do mundo...
Não importa que os compromissos, as obrigações,
estejam logo ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o
coração cantando!

Mario Quintana,
in A cor do invisível





VIDA



Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! Se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas 
de um álbum de imagens:

aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!

Mario Quintana,
in Esconderijos do tempo


O SILÊNCIO




Há um grande silêncio que está à escuta...

E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta... 
e cala.

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


DA COR



"Há uma cor que não vem nos dicionários.
É essa indefinível cor que têm todos os retratos,
os figurinos da última estação, a voz das velhas damas,
os primeiros sapatos, certas tabuletas,
certas ruazinhas laterais : a cor do tempo …''

Mario Quintana
in Sapato Florido



CONFUSÃO



Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança,
vivem ambas na casa do Presente, quando deviam estar,
é lógico, uma na casa do Passado e a outra na do Futuro.
Quanto ao Presente - ah! - esse nunca está em casa.

Mario Quintana 
Caderno H





DOGMA E RITUAL


Os dogmas assustam como trovões
e que medo de errar a sequência dos ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões.

Mario Quintana
In Apontamentos da História Sobrenatural

OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Mario Quintana ,
in Baú de Espantos

OS RETRATOS



Os antigos retratos de parede
não conseguem ficar longo tempo abstratos.

Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
porque eles nunca se desumanizam de todo.

Jamais te voltes para trás de repente.
Não, não olhes agora!

O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...

Dessas que a gente inventava para enganar a solidão
dos caminhos sem lua.


Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

ARQUITETURA FUNCIONAL




Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas.
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer
essas assombrações vulgares 
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma...tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não tem porões nem sótãos, 
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hospede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa.
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas...)
E as casa novas não tem ao menos aqueles longos,
intermináveis corredores
Que a lua vinha às vezes assombrar!

Mario Quintana
De: Apontamentos de História Sobrenatural

VOAR SEM ASA



Amar é mudar a alma de casa,
é ter no outro, nosso pensamento.
Amar é ter coração que abrasa,
amar, é ter na vida um acalento.

Amar é ter alegria que extravasa,
amar é sentir-se no firmamento.
"Amar é mudar a alma de casa",
é ter no outro, nosso pensamento.

Amar, é aquilo que embasa,
é ter comprometimento.
Amar é, voar sem asa,
e porque amar é acolhimento,
"amar é mudar a alma de casa"


Mario Quintana,
de "Apontamentos de História Sobrenatural".

DA PAGINAÇÃO



Os livros de poemas devem ter margens largas e
muitas páginas em branco e suficientes claros nas pá-
ginas impressas, para que as crianças possam enchê-
los de desenhos - gatos, homens, aviões, casas,chami-
nés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, ca-
valos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a
fazer parte dos poemas...

Mario Quintana
In Sapato Florido



ENVELHECER




Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Mario Quintana
In: Sapato Florido






Do BEM E DO MAL



No fundo, não há bons nem maus. 
Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e
os que sentem prazer em fazer o mal. 
Tudo é volúpia...

Mario Quintana ,
in Caderno H

POEMAS



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti... 

Mario Quintana
In Esconderijos do Tempo

SONHO



Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele
já estivesse escrito, mas que fosse brotando, 
no mesmo instante, de teu próprio coração.

- Mario Quintana, 
in: Caderno H


EMERGÊNCIA



Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.


Mário Quintana
in 'Apontamentos de história sobrenatural'

 

REZAS



Rezas da infância, tão puras...
Um dia a gente as esquece!
Mas o bom Deus, das alturas,
Ainda escuta a nossa prece...

Mario Quintana ,
in A cor do invisível



AS MÃOS DE MEU PAI



As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos 
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza 
que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços 
da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los 
contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das 
tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos
nodosas…
essa chama de vida – que transcende a própria vida
…e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

- Mario Quintana, 
in: Esconderijos do tempo