sexta-feira, 3 de outubro de 2014

EIS A CASA




Eis a casa
menos que ar
imponderável,
no entanto é branca de camélia
e tem perfume de cal

Com seus corredores

O alpendre

As janelas uma a uma

Vê-se o mar. As montanhas. O trem passando
O gasômetro

Vêem-se as árvores por cima com suas flores

A casa imponderável

Mas de cimento madeira tijolos ferro vidro

A pintura prateada das grades cheira a óleo a fruta a luz

A água a pingar cheira a musgo,
soa metálica, trêmula
insetos pássaros líquidos
pequenas estrelas
clarins muito longe

Peitoris gastos de braços antigos
Sombras de borboletas

Eu sei quem comprou a terra
quem pensou nos desenhos
quem carregou as telhas

Passam legiões de formigas pelos patamares

Eu sei de quem era a casa
quem morou na casa
quem morreu

Eu sei quem não pôde viver na casa

É uma casa
com seus andares
suas escadas
seus corredores
varandas
aposentos
alvenaria
muros

imponderável.

Uma casa qualquer.
Cruz que se carrega.
Imponderávelmente, para sempre, às costas.

1961.

Cecília Meireles,
in Dispersos

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