terça-feira, 31 de dezembro de 2013
ANO VELHO, ANO NOVO
Soa o sinal: são doze badaladas.
Partiu o Ano Velho e veio o Novo,
Sobe-se uma cadeira ou as escadas
E queima-se foguetes para o povo.
Mais um que passo… e sempre me renovo,
Pelo menos, na fé que essas entradas
Me tragam melhor vida e me comovo
Da sorte das pessoas mal fadadas.
Neste virar de folha ao calendário,
Não posso me queixar do meu fadário,
Pese embora diversos desenganos.
E mais uma vez… pouco é o que peço:
Saúde e amor, dinheiro que mereço
E possa isto pedir… por muitos anos.
Tito Olívio
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
NATAL
Não ouço, daqui, o repicar dos sinos,
nem os coros de natal, nem, sequer,
o alvoroço, que o meu riso de criança
transportava. Eu sei : a infância
perdeu-se no lugar onde nasci.
Contudo, a um canto da memória,
está, ainda, resistindo ao sono,
a menina que fui. E, ano após ano,
aguardo, com ela, um menino jesus,
para sempre adormecido no meu peito.
Graça Pires,
De Quando as estevas entraram no poema, 2005
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
NATAL
O natal serão perus recheados
ou a nostalgia de uma neve
longínqua que nossos pés nunca tocaram?
Serão presentes embrulhados
em papel azul
e a alegria com hora marcada?
Serão famílias bucolicamente
sorridentes com seus corações
de lava fria?
Os pés de um homem tocaram
a terra para mudar a Terra
e deixaram um rastro de amor
e sangue.
Seu nome é mistério e senha.
Por que o homem precisa da desculpa
de um outro homem
para mergulhar as mãos no mel
e no horror?
penso nas mulheres queimadas
em seu nome, amém.
Penso nas guerras, conquistas, mentiras,
intrigas, em seu nome, amém,
quando o seu maior milagre
foi equilibrar-se na superfície
escorregadia dos sonhos.
Roseana Murray,
in O Silêncio dos Descobrimentos
sábado, 21 de dezembro de 2013
NATAL, E NÃO DEZEMBRO
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
David Mourão Ferreira ,
in Cancioneiro de Natal.
domingo, 15 de dezembro de 2013
CITAÇÕES DE NELSON MANDELA
"Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele,
por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar,
as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar,
podem ser ensinadas a amar."
"Eu sou o capitão da minha alma."
"Nascemos para manifestar
a glória do Universo que está dentro de nós.
Não está apenas em um de nós: está em todos nós.
E conforme deixamos nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às outras pessoas
permissão para fazer o mesmo.
E conforme nos libertamos do nosso medo,
nossa presença, automaticamente, libera os outros."
Devemos promover a coragem onde há medo ,
promover o acordo onde existe conflito, e inspirar
esperança onde há desespero.
(em seu aniversário de 89 anos)
"Eu me retiro com a consciência tranquila,
sentindo que cumpri meu dever, de alguma forma,
com meu povo e meu país"
"A morte é inevitável. Quando um homem fez o que
considera seu dever para com seu povo e seu país,
pode descansar em paz."
"Eu lutei contra a dominação branca, e eu lutei contra a
dominação negra. Eu nutri o ideal de uma sociedade democrática
e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e
com oportunidades iguais. É um ideal que espero viver para
alcançar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou
preparado para morrer"
Nelson Mandela
SEMEADOR
Em amoroso gesto,
espargiu sementes
no espaço
nasceram luzes
e floresceram estrelas...
A nós delegou
o privilégio da colheita
Adélia Wollner
O TEATRO DAS CIDADES
Qualquer tempo é um tempo duvidoso
assim o meu cercado de cidades
plataformas instáveis
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga
que se inclina nas águas como um palco
Paro na convergência dos estrados
chove já sobre a raça ameaçada
Incertas multidões em volta passam
contemporâneas falam interpretam
a duvidosa língua das imagens
Assim no teatro abstracto das cidades
morrem palavras sobre um palco náufrago
O tempo cobre o céu que se enche de água
Gastão Cruz
in O Pianista
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
NELSON MANDELA
“Há pouca coisa favorável para se dizer a respeito da pobreza,
mas muitas vezes ela serve para incubar uma verdadeira amizade.
Muita gente faz amizade connosco quando somos ricos, mas são
muito poucos e preciosos os que se tornam nossos amigos quando
somos pobres. Se a riqueza é um ímã, a pobreza é uma espécie
de repelente. Mesmo assim a pobreza costuma revelar a verdadeira
generosidade nos outros.”
Nelson Mandela,
in "Longo Caminho para a Liberdade"
domingo, 8 de dezembro de 2013
O NASCIMENTO DA TERCEIRA IDADE
Eis que na maresia do vento
Caíram imagens, espessos subterfúgios
E sombras ociosas ostentando
Intenções de alívio em demasia.
Eis que na viagem dos vazios comprometidos
Nasceram aflitos intervalos no peso do conjunto
Processando a deterioração dos limites,
Levando o raciocínio à região do irreal,
Tomando dimensões tão prolongadas
Como oceanos afogando a margem
Dos desígnios superpostos do passado.
Eis que dormidos no sono igualitário
Do sonho por nascer ou já exumado
O vulto cresce no ser inacabado
Que a insônia transforma em terceira metade assustada
E avança nas bordas do externo da unidade
Como personagem ameaçada.
Eis quando o apelo de frio vento
Saído de moléculas falecidas
Cobre o infinito em mutações,
Mostra-se no implacável transitório,
E como flor
Retorna à sucção dos elementos
Fecundando repetidas e silentes emoções.
Adalgisa Nery
In Erosão (1973)
sábado, 7 de dezembro de 2013
O MEU PRIMEIRO LIVRO
Não me lembro da cor dos meus olhos,
quando, em menina, me comovia
com heróis imaginários.
Mas, recordo-me bem, eu fui a princesa
do conto de fadas da minha infância.
Do âmago da emoção a contemplo,
prisioneira do mesmo luar
que me protegia da noite. Sobre isto, não há lugar
para explicações metafísicas. Tudo se esgotava naquele
mundo encantado de palavras, que me apagavam do olhar
todas as sombras. Depois, perdi a inocência, por descuido,
e deixei de ser princesa.
Blondina era o seu nome.
Graça Pires
De Reino da lua, 2002
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
HÁ UM HOMEM À ENTRADA DOS MEUS SONHOS
Desato o sono e sento-me numa pedra, mais perto de mim.
E vi-o de novo.
Tão sereno como uma vereda para a nascente.
Digo, então, que há um homem à entrada dos meus sonhos.
Traz, nas mãos, promessas de trigo
e, no olhar, a alegria, presa por um fio.
Espanta-me a facilidade com que chora.
Deve ser por isso que existe um rio na minha insónia
e não posso ignorar a limpidez dos seus olhos.
Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
O MARTELO
As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado
em todas as casas que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.
Manuel Bandeira,
in Estrela da vida inteira.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
MANOEL DE BARROS
"Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade.
A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que
o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos
com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as
pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras
pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade."
Manoel de Barros,
em "Achadouros"
domingo, 1 de dezembro de 2013
PORTA
O estranho
bate:
na amplitude interior
não há resposta.
É o estranho (o irmão) que bate
mas nunca haverá
resposta:
muito além é o país
do acolhimento.
Orides Fontela,
in Poesia reunida.
E AS MÃOS...
E as mãos deles são, como as das mulheres,
afeitas a qualquer gesto de mãe:
álacres como os pássaros que aninham,
árdegos no se apressarem, tranquilos no confiarem,
simples ao toque como uma taça.
Rainer Maria Rilke,
in O Livro de Horas,
trad. de Geir Campos
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
SERÃO PALAVRAS
Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens
Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração
Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.
Eugênio de Andrade,
in "Mar de Setembro"
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
MOMENTO
Esqueço-me
dos anos e dos meses,
E dos dias, das datas, Mas às vezes
Lembro-me de momentos. Rememoro
Um que me fez chorar. E ainda choro.
Recordo-me de uma hora, céu cinzento,
A terra sacudida pelo vento,
Um terrível momento escuro e imundo
Em que me vi perdido e só no mundo,
Sob os trovões, e estremecendo às vezes
Entre relâmpagos e lividezes...
Lembranças, não antigas, mas presentes.
Lembranças, não saudades, as ausentes.
Sem novas esperanças que despontem
O dia de hoje me parece de ontem.
Nenhuma data, em mim, nenhuma festa.
Meu amanhã é o pouco que me resta.
Eu sou o que não fui e o que quis ser.
Já fiz o que me resta por fazer,
E bem no fundo de meu ser obscuro
Lembro-me antigamente do futuro...
Dante MIlano,
in Melhores poemas,
seleção de Ivan Junqueira
terça-feira, 26 de novembro de 2013
SEGUE O TEU DESTINO
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Fernando Pessoa/Ricardo Reis,
in Odes
sábado, 23 de novembro de 2013
URGENTE
"Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.
É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.
Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.
Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro. "
Fernanda de Castro,
in Poesia II
QUANDO TE DÓI A ALMA
"Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,
quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,
quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,
nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor. "
Fernanda de Castro
in, Poesia II
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
NINGUÉM ENVELHECE SÓ POR VIVER MUITOS ANOS...
Ninguém envelhece só por viver muitos anos.
A juventude não é uma época da vida, é um estado da alma.
Não é uma questão de faces lisas, de lábios vermelhos
e joelhos bonitos.
É uma força de querer, uma qualidade da imaginação, um rigor de
emoções e uma frescura da profunda primavera da vida.”
Luna Andermatt [1926-2013]
DO PONTO MAIS ALTO DA MINHYA INFÂNCIA
Do ponto mais alto da minha infância,
talvez se aviste o mar.
Deve haver um lugar,onde os barcos
se encontram para morrer sobre as quilhas.
Quem disse que nunca chega a anoitecer
nos olhos dos que ostentam um grito de aves
no declíneo das pálpebras ?
Com os pés exilados, guardo, no regaço,
os ventos e as sombras, para amparar as dunas:
tão frágeis à hora do poente.
Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
SE ME QUISEREM AMAR
Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.
Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.
LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.
Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.
LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
domingo, 17 de novembro de 2013
TÃO CEDO PASSA...
"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Fernando Pessoa/Ricardo Reis,
in "Odes"
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
CLAREIRA
Dentro do coração
desenho uma clareira
varrida de luz:
aí desdobro os mapas,
arrumo as bússolas
e todos os instrumentos
para velejar no ar.
Iço as palavras
"amor", "orvalho", "vento"
e recolho as âncoras.
Meu corpo,
livre de toda a gravidade,
já pode voar.
Roseana Murray
in Residência no Ar
MEU PAI, DÁ-ME OS TEUS VELHOS SAPATOS MANCHADOS DE TERRA...
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.
Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.
VINÍCIUS DE MORAES
In Poesia completa e prosa, 1998
Poesias Coligidas
terça-feira, 12 de novembro de 2013
E O AMOR TRANSFORMOU-SE...
E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome.
Era disto que falavam as mães quando davam conselhos
às filhas e diziam: o amor vem depois.
Era isto o depois.
Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios,
todas as horas do dia e um poema que se dissolve
dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.
José Luís Peixoto,
in Gaveta de Papéis
"AH!"
Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!
Antonio Carlos F. de Brito - Cacaso
In ‘Lero-lero’ (2002)
sábado, 9 de novembro de 2013
SURPREENDIDA POR UM CAMINHO SEM TEMPO
Surpreendida por um caminho sem tempo,
deixo que a lua se instale em minha pele,
lasciva e húmida. Habito uma ilha suspeita
de servir de abrigo a veleiros perdidos.
E digo: há um mar horizontal na solidão
de uma mulher, com as mãos cansadas
de sulcar distâncias em caminhos de espuma.
Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
DIA DE ANOS
Se os pássaros sobrevoam as palavras
para saudar o dia, é porque há festa
nos olhos de quem nasce quantas vezes é preciso.
Quase se adivinha um tempo de lembranças
como um pretexto, uma fuga, um alibi
para escapar à fadiga dos sonhos minguados.
É então que os amigos trazem afectos
que o tempo não corrompe
e o vento se torna solidário das manhãs
por onde se regressa à infância.
Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996
SÓ NOS PERTENCE O GESTO QUE FIZEMOS
Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.
Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.
Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.
Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
O POÇO
Com minhas frágeis
e frias mãos
Cavei um poço
no fundo do horto
da solidão
Cavei um poço
mas bem profundo
com minhas mãos.
- Henriqueta Lisboa,
in "A face lívida"
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
DESENCANTO
Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota à gota, do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.
Manuel Bandeira
In: "A cinza das horas"
MINHA CIDADE
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
umas das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.
Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.
Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas
ou Cora Coralina
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965
terça-feira, 5 de novembro de 2013
TODA A POESIA É LUMINOSA,
Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Eugénio de Andrade,
in Os Sulcos da Sede
domingo, 3 de novembro de 2013
VIAJAM AS PALAVRAS
Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação do trem sacode
em minhas mãos.
A paisagem me vem oferecer seus buquês roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.
Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.
Só que depois, em minha memória, que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.
O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.
O trem de ferro desloca o sentido das coisas.
Viajam as palavras.
Cassiano Ricardo
Em "O sangue das horas"
EXAUSTO
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
- Adélia Prado,
in "Bagagem"
BILHETE
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Mario Quintana
In Nariz de Vidro
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
A PALAVRA MÁGICA
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
In Discurso de Primavera, 1977
SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
In Brejo das almas, 1934
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
DE PASSAGEM
Não fiques triste: já vem vindo a noite
quando veremos sobre a terra esbranquiçada
a Lua fria, como que a rir-se por dentro,
e então descansaremos de mãos dadas.
Não fiques triste: já vem vindo o tempo
quando teremos sossego. Nossas cruzinhas estão
erguidas juntas na margem clara da vida,
chove e neva,
e os ventos vem e vão.
Hermann Hesse
In: Andares
"VIVER NÃO É PRECISO"*
Melhor é tentar dormir...
Deixar de sentir tantas dores;
sonhar talvez com raras flores.
Afiar o olfato, o tato, a visão:
Talvez, em sonho, abrir mão
da ferrenha insana razão.
Um recanto, um carrinho
nem tão cheio, ladeira
acima, me torna imprestável:
Eu, um homem que deveria
agir sem tropeço ou penas;
só ter e abraçar um carinho!
O quê a seguir virá?
A rabugência ou a indecente
perda da cara, nobre paciência?
A lamúria cansa. O excesso
de força e razão imbeciliza.
A demência não me alcança
- mas o trôpego passar avança.
Não sou 'normal'; nunca ser
pretendi. Mas um mínimo
de anímica força preciso ter!
Exausto e só, (de)escrevo
- e desconfio do meu destino,
afazeres, cansaço e sorte:
A par dos anos restantes,
à espreita na esquina, os olhos
- que não temo - da morte:
Vivo e sobrevivo como nasci.
Sem sustos, medos passados;
com pés não mais descalços.
Caminho sem pressa. Movimento
a prosa: alpendre de versos áulicos!
Alegre ou triste, só busco abraços.
À criança que trago no peito grito:
"Avante! Atrás, não só vem gente."
Há vida: reverso e maior advento.
*Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"
domingo, 27 de outubro de 2013
SEMPITERNO
Passa o tempo no caminhar das horas
levando a juventude a beleza e a graça.
Mas, o amor que sentimos e nos enlaça
permanece atemporal e é sempre agora!
-Helena Frontini-
sábado, 26 de outubro de 2013
SÓ
Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alva
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.
Edgar Allan Poe,
in Obra Completa
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
CANÇÃO PARA MUSICAR
Por que ficaram as árvores
tão sós e silentes que o vento parou?
Por que de súbito os pássaros
quedaram tão quietos que o luar se apagou?
Foi uma face de estrela
que uma água parada na mata espelhou
Foi a beleza do mundo
que na alma dos poetas, sonhando, cantou.
Tasso da Silveira,
in Poemas de Antes
A MONTANHA
A seda do céu começou a manchar-se de sombra,
e o cristal do ar sereno
embaciou-se de sombra
e com o silêncio profundo
a noite, imensa, desceu.
E junto a mim, sob o céu morto,
ficou apenas este vulto de montanha
enchendo o mundo ...
Tasso da Silveira
in Poemas
CANÇÃO
O país que procuras
fica além da distância.
Talvez teu passo não o atinja
mesmo se caminhares
toda a tarde do mundo.
O país que procuras
é longe.
Existe à beira dos profundos mananciais
de genesíaco frescor.
Banha-se na clara névoa das origens,
na pura luz da infinita inocência.
Talvez teu passo não lhe atinja
a perdida fronteira,
mesmo se caminhares, caminhares
ininterruptamente
toda a noite da Vida...
Tasso da Silveira,
in Poemas de Antes
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
RESPIRO TEU NOME
Respiro teu nome.
que brisa tão pura
súbito circula
no meu coração.
Respiro teu nome.
repentinamente,
de mim se desprende
a voz da canção.
Respiro teu nome.
Que nome? Procuro...
- Ah teu nome é tudo.
E é tudo ilusão.
Respiro teu nome.
Sorte. Vida. Tempo.
Meu contentamento
é límpido e vão.
Respiro teu nome.
Mas teu nome passa.
Alto é o sonho. Rasa,
minha breve mão.
Cecília Meireles
in Canções -1956
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
49
Quando as crianças brincam
E eu oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda da alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Que ao menos quem sou sinta
Isto no coração.
Fernando Pessoa
In Antologia Poética
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